Em ato marcado por simbolismo e críticas à atuação do governo estadual, foi lançado no Rio Grande do Sul um novo mapa hidrográfico que reúne as 25 bacias do estado. A iniciativa busca sensibilizar a população sobre a importância das águas e a urgência de protegê-las em um contexto de emergência climática e ausência de políticas públicas eficazes. De autoria dos deputados Miguel Rossetto (estadual) e Elvino Bohn Gass (federal), ambos do PT, a atividade realizada neste sábado (7), na Redenção, reuniu ambientalistas e movimentos sociais.
Como escreveu Eduardo Galeano: “Da água brotou a vida. Os rios são o sangue que nutre a terra, e são feitas de água as células que nos pensam, as lágrimas que nos choram e a memória que nos recorda”. A frase resume o espírito do encontro, que tratou a água não apenas como recurso, mas como elo entre memória, território e mobilização política.
Segundo o ex-ministro e deputado estadual Miguel Rossetto, o mapa é um gesto de resistência. “O objetivo do mapa é resgatar um pouco essa importância. Ele é um instrumento de informação, consciência e engajamento na luta ambiental, que é também uma luta social, popular, de defesa da vida”, afirmou.

O material, fruto de dois anos e meio de diálogo entre a Frente Parlamentar Ambientalista e os comitês de bacia, denunciou a omissão do Executivo estadual: “O Rio Grande do Sul passa por uma situação dramática, é um centro das emergências climáticas. E, infelizmente, o governo do estado, que deveria liderar uma nova agenda ambiental, abandona essa agenda, abandona os comitês”.
Ao apresentar o mapa, Rossetto chamou atenção para o patrimônio hídrico do estado. “São 25 bacias hidrográficas, é um estado privilegiado em relação a esse bem comum e é preciso cuidar. Os comitês de bacia são compostos por voluntários, dedicados, abnegados, e atuam sem nenhum apoio do governo. Nós estamos propondo medidas para fortalecer o papel do Estado nesse cuidado e no diálogo com os comitês, os municípios, a sociedade.”
O parlamentar foi enfático ao relacionar a preservação das águas ao enfrentamento da crise climática: “É decisivo reconhecer que as mudanças climáticas chegaram. Vamos conviver no Rio Grande do Sul com cheias, enxurradas ou estiagens. Cuidar das águas é cuidar da vida”.

“Todos bebemos dessa água”
A importância simbólica e afetiva das águas também foi ressaltada na mensagem do deputado federal Elvino Bohn Gass, lida durante o evento. “Hoje lançamos, junto com o companheiro Miguel Rossetto, um mapa que convida a cidadania gaúcha a conhecer e proteger nossos recursos hídricos. Queremos que ele esteja nas paredes das escolas, dos sindicatos, das comunidades.”
O parlamentar defendeu que o mapa seja uma ferramenta de memória e denúncia. “Todos temos lembranças que passam por um rio, uma nascente, um lago da nossa cidade. Mas também queremos que ele seja uma ferramenta contra as agressões que nossos rios sofrem, porque a água é vida.”
Assessora de Bohn Gass, Bárbara Moisinhio destacou a relação essencial entre abelhas e água: “As abelhas bebem água do orvalho, das poças de chuva, dos açudes. Essa ação, ainda que pareça pequena, impacta todas as formas de vida”.
A origem dos comitês e a urgência da retomada
O engenheiro civil aposentado Luiz Antonio Timm Grassi, que participou da criação dos primeiros comitês de bacia do Brasil, fez um histórico da legislação hídrica no RS. “Os comitês de bacia foram criados oficialmente pela lei das águas do Rio Grande do Sul, de 1994 (Lei nº 10350 de 30/12/1994), mas os comitês Sinos e Gravataí já existiam antes. São os dois primeiros do país.”
Segundo Grassi, funcionário da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan), por mais de três décadas, a criação da lei estadual foi motivada por essas experiências pioneiras. “Verificou-se que era preciso um sistema maior, determinado por lei, que organizasse a gestão das águas em todo o estado. A lei cria oficialmente um sistema, dá responsabilidades legais aos comitês e obriga o governo a cumpri-la.”
Sobre a situação atual dos rios gaúchos, o engenheiro alertou para a complexidade e diversidade dos problemas. “Cada rio tem suas características. Mas, no geral, lidamos com dois extremos: escassez e excesso. É preciso planejamento técnico e participativo para enfrentar esses desafios.”
Grassi defendeu que o Rio Grande do Sul recupere seu pioneirismo na área. “Mais do que nunca, precisamos retomar essa liderança. Depois do que o estado passou, com a emergência climática, é fundamental retomar o trabalho da gestão dos recursos hídricos.”
“Estamos mostrando para a população o que são as bacias hidrográficas, que não são só um espaço de água, mas também de solo, de vida. É a nossa casa ambiental no planeta e no Rio Grande do Sul.”

Gestão por bacia e resistência dos governos
Para o presidente do Comitê Gravataí, Sérgio Cardoso, a gestão da água não pode mais ser pensada de forma fragmentada e municipal. “Não existe política municipal pra água, ela tem que ser por bacia hidrográfica. Quando eu falo de discussão regional de bacia, estou falando de comitê.”
Segundo ele, os governos ainda resistem a abrir mão de certos poderes e entender a política da água como uma política de Estado. “Queremos uma política de Estado, não de governo. Os primeiros dois comitês do Brasil foram o do Gravataí e o do Sinos. Hoje temos 200 no país, mas ainda enfrentamos resistência dos governos tradicionais, que assumem mandatos de quatro em quatro anos achando que o Estado é deles. O Estado é nosso.”
Cardoso celebra o papel do comitê como espaço público de diálogo e pressão. “Temos que bater no tambor pra dizer: a água é nossa, não tem dono da água. E tem que ser de forma coletiva.”
Gravataí: um rio estratégico sob pressão
O rio Gravataí está entre os cinco mais poluídos do Brasil, mesmo tendo 60% de sua bacia localizada em área de proteção ambiental. “É a Área de Proteção Ambiental (APA) do Banhado Grande, a maior reserva do estado. É o que mantém o rio vivo hoje”, diz Cardoso.
Após mais de uma década de articulação, a bacia receberá R$ 3 bilhões em investimentos federais. O foco será o tratamento de esgoto, principal causa de poluição, que, segundo ele, não vem sendo devidamente tratado pela Corsan.
Em relação às enchentes, ele alerta: “O desassoreamento não pode ser tratado como solução universal. No Gravataí, que é um rio de planície, escavar mais pode agravar o problema, levando a água direto pro Guaíba.”
Sinos: do transporte à poluição doméstica
Presidenta do Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos (Comitesinos), Viviane Machado lembra a importância de entender o território para lidar com eventos extremos. “Precisamos conhecer onde estão nossas águas. A informação e a educação ambiental são fundamentais, especialmente diante das mudanças climáticas.”
Historicamente usado como meio de transporte, o rio dos Sinos sofre com os impactos da urbanização. “No alto Sinos, os impactos são menores, mas no médio e baixo, há forte degradação. O problema hoje não é mais a poluição industrial, mas a doméstica: resíduos sólidos e esgoto.”
Ela também faz um alerta sobre o desassoreamento: “Não existe solução mágica. É preciso recuperar matas ciliares, preservar banhados e entender que o rio avança em épocas de cheia. E não adianta um município desassorear seu trecho sem conversar com os vizinhos, isso pode prejudicar quem está abaixo na bacia”.
O Sinos nasce na Serra Geral, a 93 quilômetros de Porto Alegre, na pequena cidade de Caraá, no Litoral Norte do estado. Ao todo, 30 cidades gaúchas compõem a bacia do rio dos Sinos. Com quase 3.700 km², atende cerca de 1,44 milhão de habitantes, sendo cerca de 70 mil em áreas rurais e o restante em área urbana.
Caí: a pressa do desassoreamento e a perda da vegetação
Presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Caí, Rafael José Altenhofen denuncia os efeitos da política estadual de incentivo ao desassoreamento. “Perdemos mais vegetação ciliar em áreas de preservação permanente do que tudo que foi reflorestado no estado nos últimos 50 anos.”
Ele destaca que o problema não é apenas a cheia, mas também a estiagem: “O principal impacto econômico das mudanças climáticas envolvendo água não é a inundação. São as estiagens. Quanto menos tempo a água permanece nas partes altas, menos infiltra no solo e mais rapidamente escoa para as partes baixas, o que piora ambos os cenários”.
De acordo com ele, a única forma de reduzir esse impacto é manter a água o maior tempo possível nas cabeceiras. “Como se faz isso? Restituindo a vegetação desmatada por meio de boas práticas agrícolas, como o uso de sistemas de terraceamento, agricultura orgânica e agroecológica. Quanto mais tempo seguramos a água lá, tornando o solo mais drenável, melhor.”
Ao comentar a situação atual do Caí, o presidente afirma que poucas ações concretas têm sido feitas. “Nosso plano completou 15 anos e não foi implementado. Isso não cabe aos comitês, mas ao Estado. Sem ações concretas, a qualidade hídrica se deteriora, e os custos para reverter a degradação aumentam.”
Educação, ciência e política pública
As falas convergem em torno de um ponto comum: é preciso mudar a cultura da água no Brasil. “Nós não queremos proteger os rios e as árvores porque são bonitos, mas porque precisamos deles para sobreviver”, diz Viviane Machado. “Não existe vida sem água. Os rios são fecundadores da vida”, completa Sérgio Cardoso.
“Hoje, já há bacias hidrográficas no país onde não é mais possível ampliar a captação de água, porque chegaram ao limite. Se não enxergarmos a água como oportunidade, ela se tornará problema”, alerta Altenhofen.
A solução, segundo todos, passa por três pilares: educação ambiental, ciência e políticas públicas estruturantes e integradas por bacia hidrográfica. “Precisamos entender que esse rio, esse curso d’água, é fundamental para nossa existência. E nós precisamos ter respeito por ele, e buscar ações e políticas públicas. A atuação individual é importante, mas a ação coletiva tem muito mais impacto”, resume Machado.

O que diz o governo do estado
Procurado pelo Brasil de Fato RS, o governo do estado afirmou que discorda totalmente da afirmação de ausência ou omissão na condução de uma política ambiental eficaz.
De acordo com o Executivo a eficácia da política pública está comprovada em dados. Nos últimos anos, o Rio Grande do Sul apresentou uma importante redução do desmatamento. Segundo o último relatório do MapBiomas, divulgado no mês de maio, o bioma Pampa, que no Brasil é exclusivo do estado, registrou uma queda de 42% no desmatamento entre 2023 e 2024.
O Executivo estadual, através da Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura, afirma que o Rio Grande do Sul está entre os dez estados que mais implementaram pautas ambientais no Brasil, de acordo com o ranking da Associação Brasileira de Entidades Estaduais de Meio Ambiente. Segundo o Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), no ano de 2023 o Rio Grande do Sul apresentou emissões negativas de CO2 na atividade Mudança de Uso da Terra e Florestas.
“O Executivo reafirma seu compromisso com o diálogo democrático e transparente. A gestão das águas é um tema prioritário, e diversas instâncias de participação seguem ativas. O Estado está aberto a aprofundar o diálogo com os comitês, técnicos e lideranças para ajustar e fortalecer a política de recursos hídricos. Cabe destacar que o desafio climático exige colaboração de todos os entes federativos e setores da sociedade civil, e reforça que a Sema se faz presente em todas as reuniões dos Comitês de Bacias, onde deve acontecer o diálogo sobre o tema.”
Neste link confira as respostas na íntegra.
O mapa pode ser acessado neste link.
