Com o tema “A Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora como Direito Humano”, a 4ª Conferência Estadual de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (4ª Cestt) teve início nesta sexta-feira (13), em Porto Alegre. O evento reúne cerca de 600 delegados e delegadas de 151 municípios do Rio Grande do Sul e se estende até domingo (15), com uma programação intensa voltada à formulação de propostas que serão levadas à 5ª Conferência Nacional, marcada para agosto.
A conferência estadual, convocada pelo Conselho Estadual de Saúde do RS (CES), é resultado de um amplo processo de mobilização social que contou com 151 etapas municipais e 10 regionais preparatórias. O evento busca articular ações para enfrentar os impactos das novas formas de organização do trabalho, discutir o fortalecimento da rede pública de proteção à saúde do trabalhador e reforçar a participação popular nas decisões do Sistema Único de Saúde (SUS).

Participação popular e controle social na saúde
Na mesa de abertura, a presidenta da conferência e do Conselho Estadual de Saúde do RS, Inara Ruas, destacou a importância histórica da participação social para o fortalecimento do SUS e para a formulação de políticas públicas que atendam às necessidades reais da classe trabalhadora. “O controle social não é um detalhe, é parte estrutural do SUS. Ele garante que as decisões não fiquem só nas mãos dos gestores, mas venham de quem vive a realidade nos territórios, nos locais de trabalho, nas comunidades. Estamos aqui com uma delegação ampla, diversa, que representa esse compromisso com o SUS público, gratuito e de qualidade”, afirmou.

Durante sua fala, Ruas também ressaltou a amplitude da mobilização que antecedeu a conferência. “Mais de 1,6 mil propostas foram sistematizadas pelas etapas municipais e regionais. Isso mostra a força de um processo construído coletivamente, com a escuta ativa dos trabalhadores e trabalhadoras em todas as regiões do estado.”
Ela também destacou a relevância do momento: “A qualidade desse debate é fundamental. As propostas que tirarmos aqui vão aprimorar o plano estadual de saúde do trabalhador e serão defendidas pela delegação do RS em Brasília. Temos um papel importante para o futuro da política de saúde do país”.
A secretária adjunta da Saúde do RS, Ana Costa, mencionou que a Secretaria Estadual de Saúde (SES) reconhece a necessidade de maior integração entre as áreas técnicas e os territórios. “Estamos comprometidos em transformar escuta em ação, e proposta em política pública.”
Ela também pontuou que o enfrentamento às desigualdades deve orientar todas as decisões em saúde. “A política de saúde do trabalhador não pode estar apartada do debate sobre desigualdade social.”
Adoecimento no trabalho e desafios contemporâneos
Na abertura da conferência também foram abordados os principais desafios enfrentados pela saúde do trabalhador diante das transformações no mundo do trabalho. Entre os temas, destacaram-se o aumento dos adoecimentos mentais, a flexibilização de direitos e os entraves na seguridade social.
Alfredo Elenar, coordenador da comissão organizadora da conferência, chamou a atenção para os números alarmantes de adoecimento mental entre os trabalhadores no estado. “Somente este ano, foram registrados mais de 37 mil afastamentos por estresse e ansiedade no Rio Grande do Sul. Isso é resultado direto das novas formas de trabalho, da sobrecarga e da ausência de políticas eficazes de proteção”, disse.
Ele também criticou as dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores no acesso à Previdência Social. “Hoje o auxílio-doença só cobre 30 dias, e temos mais de dois milhões de perícias represadas no país. Isso é uma violação do direito à saúde, e precisamos mudar essa realidade com propostas concretas que serão levadas à conferência nacional”, completou.
A superintendente estadual do Ministério da Saúde no RS, Maria Celeste de Souza, destacou o papel estratégico da conferência diante dos desafios vividos no estado. Segundo ela, o momento é decisivo. “O debate nesta conferência foi um enorme desafio que as delegações que estão aqui e todas as outras pessoas do controle social do Rio Grande do Sul se colocaram como objetivo efetivo desta participação”, afirmou.
Celestes de Souza frisou a importância de se debater a saúde dos próprios trabalhadores e trabalhadoras do SUS, que atuaram na linha de frente da pandemia e ainda sofrem os impactos da covid-19. “São aspectos como a saúde mental que precisamos trabalhar, mas também os impactos que a covid deixou para os trabalhadores e trabalhadoras da saúde”, pontuou.
Ao final, ressaltou a expectativa de que o evento contribua de forma qualificada para o debate nacional: “Que possamos levar para a conferência nacional propostas que estejam à frente da política nacional de saúde do trabalhador e da trabalhadora no Brasil”.
SUS e a saúde do trabalhador
O secretário municipal de Saúde de São Francisco de Paula (RS), Juliano da Paz Carvalho, ressaltou que o SUS é uma conquista da Constituição de 1988, fortalecida pela Lei 8.080, mas lembrou que os trabalhadores e trabalhadoras da saúde ainda enfrentam desafios graves nos ambientes de trabalho. “Esses espaços, que garantem o sustento e as conquistas pessoais e familiares, também podem se tornar ambientes de adoecimento, e o SUS precisa estar atento a isso”.
Segundo ele, diferentemente dos grandes grupos econômicos, que influenciam diretamente os espaços de decisão, os usuários e trabalhadores precisam estar organizados. “Se não estivermos organizados, não conseguiremos fazer os recursos chegarem aonde realmente precisam chegar: no cuidado das pessoas mais pobres”, disse.
O secretário de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (Sgtes), Felipe Proenço, do Ministério da Saúde do Brasil, apontou que o debate sobre a saúde do trabalhador tem caráter estratégico para o fortalecimento do SUS e que o governo federal tem trabalhado para retomar políticas interrompidas nos últimos anos. “Estamos retomando a gestão do trabalho e da educação em saúde como prioridade. O que for deliberado aqui será considerado na construção das próximas diretrizes nacionais”, afirmou.
“Não estamos aqui para tirar fotos ou cumprir tabela. Estamos aqui porque acreditamos no SUS como projeto civilizatório”, declarou Agnes Soares da Silva, diretora do Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador (DVSAT/SVSA) do Ministério da Saúde. Agnes ressaltou que o ministério reconhece a importância da participação social e da escuta ativa dos trabalhadores na formulação de políticas: “Não dá pra fazer política pública sem a participação de quem está na ponta, de quem sente os impactos da precarização todos os dias”.
Ela também destacou que o SUS deve ser compreendido como uma ferramenta de justiça e transformação social. “A saúde do trabalhador é central no nosso projeto de reconstrução do país.”
“Tem um Brasil que não quer contribuir”
O superintendente regional do Ministério do Trabalho no Rio Grande do Sul, Claudir Nespolo, foi direto ao afirmar que o problema não é uma crise econômica real, mas uma disputa sobre quem paga a conta. “Não estamos em crise. O PIB cresce, o emprego aumenta, a inflação cai, a renda sobe. Mas tem um Brasil que não quer contribuir, que nunca pagou e não quer pagar agora”, criticou. E concluiu: “Ou entra mais dinheiro, ou vamos fragilizar o SUS. E quem precisa do SUS vai ficar chorando sem atendimento. Esse é o jogo real”.
Nespolo também defendeu a retomada das conferências como espaços democráticos e de diálogo: “Conferência é lugar de escuta e aprimoramento. Menos ódio, mais diálogo. No presencial, a divergência é saudável. Só cresce quem escuta e constrói junto”.

Grupos de trabalho discutem 96 propostas sistematizadas
O sábado (14) será reservado à realização dos Grupos de Trabalho (GTs), distribuídos entre o Hotel Embaixador e o Colégio Estadual Coronel Afonso Emílio Massot. Os debates ocorrerão em dois turnos, das 9h às 12h e das 13h30 às 15h, com o objetivo de analisar e aprovar as 96 propostas da conferência, organizadas em três eixos temáticos.
As propostas abrangem temas como:
- Implementação de políticas públicas de segurança e saúde no trabalho;
- Fortalecimento dos Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (CERESTs);
- Qualificação dos sistemas de informação do SUS para notificação de agravos relacionados ao trabalho;
- Combate ao trabalho análogo à escravidão e ao assédio moral e sexual;
- Proteção dos trabalhadores diante das mudanças climáticas e regulação do uso de agrotóxicos.
Também estão em debate a redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais, a criação de uma carreira única no SUS, a revogação das reformas trabalhista e previdenciária e a regulação de novas formas de trabalho, como o home office e os aplicativos.
Etapa nacional e encerramento no domingo
A eleição da delegação gaúcha que participará da 5ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (5ª CNSTT) também ocorrá no sábado. O credenciamento dos candidatos será até às 15h e a votação será realizada após a finalização dos grupos de trabalho.
O encerramento da 4ª CESTT está previsto para este domingo (15), com a plenária final a partir das 9h, no Hotel Embaixador. Durante a manhã, serão deliberadas as 12 propostas prioritárias que o Rio Grande do Sul levará à conferência nacional. Às 9h45 será feita a leitura e aprovação das moções, e às 10h15 será homologada a delegação eleita. A solenidade de encerramento ocorre às 11h15, com a leitura das propostas eleitas.
“Essa conferência mostra que os trabalhadores não estão apenas resistindo. Estamos propondo, estamos construindo caminhos”, afirmou Heliana Hemetério, conselheira nacional de Saúde. “É no chão das fábricas, nos postos de saúde e nas escolas que a política de saúde do trabalhador tem que acontecer de verdade. A gente não aceita mais ser descartável”.
Hemetério destacou que o movimento dos trabalhadores tem atuado de forma propositiva, buscando políticas públicas que garantam proteção, dignidade e valorização. Segundo ela, a saúde do trabalhador precisa deixar de ser invisibilizada e passar a ser central nas ações do Estado.
Ao final, Inara Ruas reforçou o papel coletivo da conferência como espaço de construção política e cidadã: “Essa conferência é mais que um evento, é um processo vivo de escuta, diálogo e proposição. Aqui está o SUS real, feito por quem vive o dia a dia nos locais de trabalho e luta por políticas públicas de verdade.”
