A Feira da Agricultura Familiar e Economia Popular Solidária dos territórios Inhamuns e Crateús chegou à vigésima edição este ano, celebrando a culminância de diversos processos de formações e mobilizações populares. Realizada no município de Crateús, sempre nas primeiras quintas e sextas-feira de cada ano, o encontro envolve a atuação de pastorais e movimentos sociais com oficinas e formações, além da venda de produtos e apresentações culturais. Este ano, o tema do evento foi “Agricultura Familiar e Ecologia Integral: Segurança Alimentar e Bem Viver no Semiárido”.
“Depois da Constituição de 88, lá nos anos 90, os movimentos e as pastorais sociais começaram a entender que nós, aqui no Semiárido, somos um povo que tem muitas possibilidades e que a gente não precisa migrar para construir um bem viver”, argumenta Adriano Leitão, coordenador da Cáritas Diocesana de Crateús, uma das realizadoras do evento. Segundo ele, a partir do momento que as comunidades lutaram e conquistaram a mudança de paradigma na política, não mais de “combate à seca”, mas de convivência com o Semiárido, várias revoluções passaram a acontecer.
Uma delas foi a possibilidade de, com o auxílio das tecnologias de convivência com o Semiárido, produzir no campo mesmo em tempos de estiagem. Prova disso é que a vigésima edição da Feira ocorre com apenas uma interrupção durante a pandemia de Covid-19 em 2020, e não por falta de produtos. “Nós vivemos na região seis anos de estiagem, de 2012 a 2017. Em outras décadas isso significaria alto índice migratório, morte de muitas pessoas e de animais. Ainda houve migração e morte de animais, mas bem pouca em relação ao que tínhamos. E não houve morte de pessoas por inanição ou falta d’água”, pontua Kryssia Melo, assessora técnica da Ematerce.

A Feira Regional, portanto, foi um anseio das organizações do campo e da cidade, tendo agricultoras e agricultores, sindicatos e movimentos populares como protagonistas da construção.
“Antigamente o produtor ia com o milho e o feijão para as feiras, os armazéns, e perguntavam quanto eles queriam pagar por aquilo. Vivia submisso aos atravessadores. A feira regional e as feiras municipais da agricultura familiar eram um sonho nosso, para que a gente pudesse dizer o quanto o nosso produto vale, porque nós sabemos o trabalho que dá”, recorda Maria de Jesus, agricultora familiar que ajudou a articular as primeiras feiras municipais em Crateús. Ela conta que estava à frente de um dos 40 empreendimentos oriundos de cinco municípios que participaram da primeira edição da feira.
A vigésima edição contou com a maior quantidade de empreendimentos até agora, 235, e recorde de participação feminina (80%). Os expositores vieram de 33 municípios de 9 regiões cearenses. Cerca de 25 mil pessoas compareceram nos dois dias de evento. Entre as formações, foram 14 atividades realizadas em quatro dias.

Cultura
Desde a primeira edição, o palco da cultura é um dos destaques da feira. Para Raimundo Clarinto, cantor, compositor, poeta e agente da Cáritas, a feira em si já é cultura. “Se a gente pensar que os agricultores, a maioria do campo se encontram na praça com clientes, a maioria da cidade, a gente já tem ali um grande encontro, uma grande diversidade de vozes. O palco, a arte da feira só reflete essa diversidade”, diz.
Pelo palco passaram desde cordelistas e grupos de forró pé-de-serra até bandas de rock e orquestras. “É uma representação do melhor que nós temos não só na nossa região, mas também no Brasil, porque essa feira não é mais um evento só regional. Ela é uma das mais importantes do país”, reforça Clarindo.
Intercâmbios
Os encontros formativos são outro ponto alto da feira e, desde 2012, intercâmbios também fazem parte da programação. Já participaram da feira empreendimentos e grupos de militantes ou ONGs de todas as regiões do Brasil, além de grupos vindos da Itália, Suíça, Alemanha e Cabo Verde. A vocação da feira para a formação remete à própria história dos territórios, que começaram a fazer parte do Ceará desde 1964, quando o então bispo recém-nomeado, da nova Diocese de Crateús implementou por três décadas escolas de formação popular, especialmente voltadas para as camponesas e os camponeses. Esse processo resultou no empoderamento dessas famílias, que na década de 80 começaram a ocupar os sindicatos de trabalhadores rurais, nos anos 90 começaram a implementar pequenas feiras, e, a partir da conquista de políticas públicas para convivência com o Semiárido, protagonizaram a criação da feira regional.
O intercâmbio ocorre, em geral, por meio de encontros nacionais ou regionais que se integram à agenda da Feira. Este ano, o Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) realizou uma intervenção político-cultural denunciando uma série de empreendimentos de mineração em Inhamuns e Crateús, que ameaçam ou já prejudicam os territórios. Entre os casos mais emblemáticos estão os impactos já causados nos municípios de Independência, no assentamento Cachoeira do Fogo, e a ameaça de expansão para outras comunidades. Outro município sob ameaça é Ipaporanga, cidade com mais de 70 olhos d’água identificados, e que resiste há anos à chegada de mineradoras que buscam extrair minério de ferro no território.
A Feira também foi espaço de encontro de pescadores e pescadoras artesanais das regiões dos açudes, promovido pela Articulação dos Pescadores e Pescadoras Artesanais dos Açudes (APPAA) que, entre outros debates, denunciou a falta de políticas públicas para essas comunidades, que sofrem com o sumiço de peixes em diversos pontos, principalmente pela presença de espécies predadoras não endêmicas, como tucunaré e piranha, prejudiciais ao ecossistema.