A ofensiva aérea de Israel contra o Irã, realizada na noite da quinta-feira (12), pode inaugurar “um novo capítulo de uma grande mentira contada e recontada”, nos moldes da que justificou a invasão do Iraque em 2003. A análise é do doutor em Relações Internacionais Arturo Hartmann, membro do Centro Internacional de Estudos Árabes e Islâmicos da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Para ele, a operação teria sido planejada em conjunto com os Estados Unidos e mira não apenas instalações militares iranianas, mas também uma possível mudança de regime no país persa.
“Essa operação foi uma planificação conjunta entre Washington e Tel Aviv. Me parece mais coerente e realista. Em resumo, eu não acho que os Estados Unidos foram arrastados para a guerra por Israel”, afirma Hartmann, em entrevista ao Conexão BdF, da Rádio Brasil de Fato.
Segundo ele, a ofensiva atende a interesses estratégicos do presidente Donald Trump, que já havia demonstrado intenção de remodelar a presença norte-americana na região. Uma das hipóteses, avalia Hartmann, é a repetição da lógica que sustentou a guerra do Iraque: usar a força militar para eliminar lideranças resistentes a um acordo e, assim, impor termos mais vantajosos aos EUA. “Usando a força, destrói as partes mais resistentes ao acordo. Por isso, a decapitação da liderança iraniana”, aponta.
Outra possibilidade seria pressionar o Irã a abandonar ou limitar seu programa nuclear, mesmo com fins civis, como já ocorreu em negociações anteriores. Hartmann lembra que, após sinalizar disposição para diálogo, o governo Trump voltou atrás e exigiu “produção zero de urânio”, criando um impasse. Diante disso, avalia o especialista, a crise militar atual funcionaria como instrumento de barganha.
Ainda assim, ele questiona se a estratégia de “decapitação da liderança”, como aplicada ao Hamas e no Líbano, é viável no caso iraniano. “Estamos falando de um Estado. Apesar de haver oposição interna e descontentamento com o governo, também existe resistência generalizada à intervenção externa. Esse é um dilema interno, não só do governo, mas da população”, afirma.
Para Hartmann, a atual escalada se insere em um movimento mais amplo de reconfiguração geopolítica no Oriente Médio, impulsionado por Israel desde o fim de 2023. “Netanyahu enxergou uma janela de oportunidade entre dois governos dos EUA. O de [Joe] Biden incentivou e supriu o genocídio em Gaza. Com Trump, se abre uma nova janela para remodelar toda a ordem regional”, avalia.
Hartmann destaca que o Irã observa com atenção os impactos de intervenções ocidentais em países vizinhos. “Com o que vem acontecendo, já é possível dizer, pegando essa varrida que acontece no Oriente Médio, que o que aconteceu no Líbano, na Síria, pode acontecer agora no Irã. E o atual governo iraniano sabe dos males que podem vir de uma intervenção ocidental. Os vizinhos todos são exemplo: o Afeganistão, que faz fronteira, o Iraque, o Líbano”, diz.
Uma escalada planejada
O ataque matou figuras centrais da cúpula militar do Irã, como o chefe da Guarda Revolucionária, Hassan Salami, o comandante das forças armadas, Mohammed Bagheri, além de cientistas nucleares. O Irã retaliou disparando mísseis contra Tel Aviv e Jerusalém. O governo israelense, por sua vez, acusou Teerã de atingir civis e prometeu impor “um preço muito alto”.
Para Hartmann, a retórica de Tel Aviv faz parte da estratégia diplomática israelense para justificar a continuidade da escalada militar. “Na verdade, Israel ataca e o Irã responde. Esse plano e essa retórica não vêm de agora. O governo Netanyahu, há mais de uma década, promove essa ideia de atacar o Irã”, diz.
Fragmentação palestina e riscos de expansão do conflito
Hartmann também comenta a possibilidade de o ataque ao Irã reagrupar forças da resistência palestina. Para ele, isso depende da superação da fragmentação interna. “O Hamas não desapareceu, mas está enfraquecido. O Fatah continua colaborando com forças ocidentais. Há outros grupos também. Precisa achar uma agenda comum, nem que seja de curto ou médio prazo, só que isso é difícil não só pelas discordâncias internas, mas também pela força da colonização que quer fragmentar essas forças”, analisa.
Ele acredita que a devastação em Gaza e o cerco à Cisjordânia minam qualquer tentativa de articulação política ou militar. “Gaza é uma terra arrasada. Cenas de fome terríveis colocam em xeque qualquer possibilidade de organização política. A Cisjordânia está sob total cerco e bloqueios internos. Israel conseguiu escalar também a violência interna dentro da Cisjordânia”, aponta.
Críticas à postura do Ocidente e à atuação do Brasil
Em meio à escalada, o governo brasileiro condenou a ofensiva israelense, classificando-a como uma violação à soberania iraniana e ao direito internacional. Hartmann vê contradições na postura do Brasil. “[O governo] Lula (PT) cria um dilema. Ele apoia a construção de um Estado [palestino] e já se referiu ao que acontece em Gaza como genocídio. Por outro lado, mantém relações comerciais com Israel”, expõe.
De acordo com ele, no entanto, para realmente afetar Israel, a materialidade militar do país teria que ser atingida, e isso só os EUA podem fazer. “O cumprimento do Brasil é importante, mas não resolve a questão porque o cerne da possibilidade material de Israel agir militarmente é sua aliança com os Estados Unidos, e romper com isso seria a grande mudança”, opina.
Em relação ao Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), o especialista é cético. “Os países do bloco ocidental vão se colocar ao lado de Israel, pelo menos vão dar suporte diplomático ao que Israel está fazendo. Na Palestina, poderíamos fazer outro cenário, mas em relação ao Irã, acho que esse bloco ocidental vai se colocar ao lado de Israel”, prevê.
Hartmann critica também o debate conduzido por potências ocidentais sobre a criação de um ou dois Estados para a Palestina. “Se vai ser um Estado, dois, vinte, isso quem tem que decidir são os palestinos. Mas a ação imediata agora, do horizonte político palestino, é não ser exterminado. O povo não ser exterminado”, avalia. “Chegamos numa escalada tal hoje que, na verdade, a função de um governo ou de uma diplomacia não é tentar se colocar como um mediador, mas de interromper um genocídio”, defende.
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