O governo do Níger anunciou a nacionalização de uma unidade da empresa francesa de urânio Orano. Trata-se de sua subsidiária Somaïr, centro de um impasse que se estende desde o ano passado, quando a empresa suspendeu sua produção na mina. O anúncio foi feito na semana passada pela televisão estatal citando “comportamento irresponsável, ilegal e desleal” da empresa francesa. A Orano é 90% detida pelo governo francês e opera minas no país africano há décadas.
Na mesma ocasião, o presidente do país Abdourahamane Tiani anunciou a nacionalização da Sociedade Nigerina de Eletricidade (Niglec SA). Criada como uma Sociedade Anônima de Economia Mista, a Niglec é responsável pela produção, transporte e distribuição de eletricidade em todo o país. Seu capital social, avaliado em mais de 76 mil milhões de francos CFA, era detido em mais de 99% pelo Estado, sendo o restante repartido por vários acionistas minoritários, entre eles a Agência Francesa de Desenvolvimento.
Apesar da predominância pública, a empresa manteve-se autônoma durante várias décadas, com tentativas de privatização que nunca se concretizaram.
Segundo analistas, para além dos números, a própria falta de abastecimento energético adequado motivou a ação. Há vários anos, a população do país do Sahel se vê confrontada com cortes de eletricidade recorrentes, devido à forte dependência energética do país em relação à Nigéria.
A vulnerabilidade foi evidenciada nos últimos dois meses, quando uma avaria na rede elétrica nigerina mergulhou centenas de milhares de lares nigerianos na escuridão, afetando escolas, hospitais, lojas e repartições públicas.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Mamane Sani Adamou, da Organização Revolucionária para a Nova Democracia ORDN (Tarmouwa), analisa a decisão do governo de nacionalizar a Nigelec e compara a medida com a recente aquisição da Somair, destacando as diferenças e motivações por trás de cada ação. As duas decisões são vistas por Adamou como passos importantes para garantir a soberania econômica do Níger.
A Organização Revolucionária pela Nova Democracia (ORDN) é um partido fundado em 1992, após a abertura do multipartidarismo, e conhecido por sua participação ativa na luta sindical do Sahel.
Confira a entrevista completa:
Como você vê o processo de nacionalização da Nigelec?
O governo pensa que, ao assumir o controle de 100% da empresa, vai mudar a sua direção, alterar a forma como a empresa é gerida e, até 2030, conseguir 60% de acesso à eletricidade, o que não deixa de ser uma conquista considerável. Portanto, o Estado quer pôr fim a uma injeção que não é muito satisfatória e quer acelerar o acesso à eletrificação para a grande maioria dos nigerianos.
Qual é a situação atual da eletricidade no Níger e, sobretudo, qual é o grau de dependência do Níger em relação à Nigéria? O Níger continua a depender do país vizinho para 70% da sua eletricidade?
Bem, houve uma mudança. Tem sido feito muito trabalho em Niamey, o que está reduzindo um pouco essa porcentagem. Por isso, penso que estamos ainda menos dependentes da Nigéria do que no passado. Apesar disso, continua a haver [no Níger], eletricidade da Nigéria, o que é importante aqui, não só para a cidade de Niamey, mas para o resto do país. À exceção de Agadez, o restante do país é abastecido por energia térmica produzida do carvão. Tudo o resto é eletrificado a partir da Nigéria, mas há cada vez mais centros de produção de eletrificação e a energia solar começa a aparecer. Assim, tudo isto em conjunto faz com que, só na cidade de Niamey haja um pouco menos de dependência da energia da Nigéria, mas, no geral, continuamos a depender do país.
Em 2024, o Níger retirou o controle operacional da empresa francesa Orano sobre suas três principais minas no país: Somaïr, Cominak e Imouraren — esta última possui uma das maiores reservas de urânio do mundo. Como você vê a nacionalização da Nigelec em comparação com a nacionalização da Somaïr? Podemos dizer que se tratam de medidas semelhantes no caminho da soberania energética?
Bem, não são medidas muito similares. Pode-se dizer que são semelhantes no sentido de que visam pôr fim a uma crise, mas as duas situações são diferentes. A Somaïr foi a primeira empresa a iniciar a extração de urânio no Níger, em 1971, e é detida em 63% por acionistas franceses. Desde o golpe de Estado de 26 de julho, tem havido um impasse com a França, o que fez com que o Níger parasse todas as exportações de urânio. Assim, a represália da França foi, em primeiro lugar, interromper a exploração minerária em Cominak, não pôr em funcionamento o megaprojeto de Imouraren — que era objeto de um contrato com a França — e, depois, praticamente inviabilizar o funcionamento dessa central, porque a França trouxe de volta todo o seu pessoal.
O Níger decidiu, finalmente, adquirir todas as ações da Somaïr para pôr fim a esta crise do urânio, porque a França havia causado muitos danos à empresa ao tentar vendê-la e ao impedir o Níger de administrá-la como devia. É isso que está em jogo. Não é exatamente a mesma coisa, porque antes tínhamos 33%, 34% de participação, e agora teremos tudo. Assim, a Somaïr passará a pertencer exclusivamente ao Níger, e o país se beneficiará de toda a cadeia de valor da exploração do urânio.
Você acredita que, num futuro próximo ou distante, será possível ao Níger começar a vender eletricidade, como a Nigéria faz atualmente?
Estamos tentando retomar esse plano, que é o de o Níger combinar a exploração dos recursos fósseis com uma melhor utilização da energia solar, o que significa que a porcentagem de energia solar na matriz energética do país vai melhorar significativamente. Ao mesmo tempo, o Níger combinará o uso de diversas fontes, o que permitirá produzir eletricidade suficiente para exportar. Por ora, ainda não chegamos lá. Precisamos pôr tudo em ordem.
Adamou, há uma ideia muito forte de Nkrumah, líder pan-africanista de Gana, que dizia que não se pode construir o pan-africanismo sem eletricidade. Como você vê essa ideia de Kwame Nkrumah nos dias de hoje, neste momento que estamos vivendo?
Sem o controle da energia, é impossível conquistar qualquer coisa. Antes de mais nada, está em jogo a industrialização do país. Muitas empresas relutam em se instalar aqui porque o custo da energia é muito elevado. Assim, dominar a eletrificação significa dominar a fonte da industrialização, permitir a transformação dos produtos agrícolas e, portanto, lançar as bases de um desenvolvimento autônomo. Nesse sentido, Nkrumah tem toda a razão. A energia é vital nesse domínio. Precisamos controlá-la, torná-la acessível aos nossos cidadãos e, sobretudo, garantir que as fábricas possam se desenvolver, porque a energia será acessível e, assim, poderemos transformar nossos produtos localmente, em vez de perpetuar a lógica da divisão internacional do trabalho, que nos confina à posição de exportador de matérias-primas e consumidor de produtos processados. Isso põe fim a essa dependência.