Ney Matogrosso é um artista inimitável, singularíssimo, com uma força e uma vitalidade que nenhum contexto opressivo seria capaz de reprimir. Filmar sua trajetória é um desafio que exige coragem equivalente, muita criatividade e liberdade de experimentar.
Toda essa vitalidade pode ser encontrada em Homem com H, filme de Esmir Filho, que conquistou as salas de cinema, atingindo uma bilheteria de 600 mil ingressos e também se tornou hit instantâneo na Netflix.
Grande parte do poder do filme vem da atuação exemplar de Jesuíta Barbosa, que consegue traduzir, ou seja, construir relações de equivalência, entre a energia corporal de Ney e seu próprio corpo. Nos pontos mais altos, como nas performances no palco, nos diálogos com o pai militar, o ator parece mimetizar de maneira original o espírito arredio de Ney em seus gestos mais expressivos.
Nas primeiras cenas, Jesuíta Barbosa já impõe sua presença. Seja nas imagens do menino brincando numa floresta à beira de um rio intercaladas com sua performance glam rock tropical, andrógina, vestes extravagantes. Ou na passagem da infância para juventude, que se dá em um plano sem cortes: o garoto criança manuseia uma bomba d’água, e quando a câmera volta, já o vemos transformado em um homem.
Os espectadores não familiarizados com a biografia do artista talvez levem um susto ao vê-lo em um quartel, ambiente repressivo, o contrário absoluto da liberdade exigida pela expressão artística. Além de ter vivido um romance proibido dentro da aeronáutica, no Rio de Janeiro, Ney Matogrosso foi um cadete exemplar. Um verdadeiro homem com H entre os militares. Esmir Filho construiu o ambiente militarizado com toda uma carga homoerótica: homens exibindo seus corpos suados, esfregando-se uns nos outros em lutas corporais sem camisa, que parecem elas mesmas performances e danças.
Foi justamente no auge da ditadura militar, já com mais de 30 anos, em 1973, pós Ato Institucional Nº 5, o AI-5, que o furacão Ney Matogrosso atingiu a cena da MPB, como vocalista da banda Secos & Molhados. Uma banda que ficou pequena e um tanto provinciana para o talento de sua voz e ímpeto transgressor do artista.
Sangue latino
Torna-te quem tu és. Essa máxima nietzschiana poderia ser tatuada no corpo de Ney. Nada e nem ninguém parece ser capaz de contê-lo em sua busca por uma transgressão que se confunde com uma busca por si mesmo. Uma verdadeira ética da existência: viver artisticamente. A certo momento do filme, uma de suas amigas conta que o jogo de tarô revelou três vezes a carta Morte para ele. Essa identidade mutante é a essência da própria ideia de identidade. Uma busca constante, uma construção radical e ininterrupta, sempre em movimento, como os barcos dos antigos argonautas.
A voz do artista e do ator estão tão sincronizadas que não sabemos quando há dublagem ou não.
Cinebiografias sempre correm o risco de achatar grandes personagens, ainda mais se são controladas pelos seus proprietários obcecados por fidelidade à autoimagem. A ilusão de imparcialidade e objetividade narrativa nesses casos é só mais um artifício entre tantos outros. No caso de Homem com H, sentimos falta dos defeitos do artista. Tudo parece soar como virtude.
Curiosa é a aparição bem detalhada de Cazuza no filme de Ney Matogrosso. O compositor carioca, filho do dono da Som Livre, ocupa um espaço bem significativo, algo que não havia acontecido na obra de qualidade mediana ‘Cazuza – O tempo não para’, de 2004. As memórias do passado estão sempre em disputa. Dois filmes que, além da trajetória de grandes figuras da MPB, também trazem ao debate à questão da ascensão da epidemia de HIV, no final dos anos 80, sob o contexto mais amplo da ditadura e da abertura política.
Anti-Édipo
Não é fácil encarar o desafio de ser fiel a si mesmo. Fazemos de tudo para escapar do peso de ser livre, construir o próprio caminho ou expressar nossas verdades mais íntimas. Freud costumava dizer que poetas e artistas já investigavam o inconsciente muito antes dele constatar a hipótese de sua existência. Ney Matogrosso, que várias vezes no filme se autointitula como bicho – e mais como um ator, com seus jogos de máscaras e vestes, do que propriamente como um cantor – parece performar uma figura andrógina relativamente liberta dos mecanismos de repressão e culpa.
“Por que você acha que as pessoas te agridem tanto?”, pergunta a jornalista Fátima, a certo momento do filme. “Acho que elas veem coisas que existem nelas e não sabem lidar”, explica Ney. “Por isso elas me agridem.”
Ney não precisa matar simbolicamente o pai. Ele o arrasta para seu centro de gravidade. E o transforma, por sua arte, pelo afeto.
*Marcos Vinícius Almeida é escritor, jornalista e redator. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP, colaborou com a Ilustríssima da Folha de S. Paulo e O Globo. É autor do romance Pesadelo Tropical (Aboio, 2023).
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.