“Eu acredito que toda manifestação artística verdadeiramente comprometida com o campo existencial e filosófico é, em si, um ato político”. A frase de Allan Souza Lima dialoga com a reflexão que o ator fez, em Santa Cruz do Sul (RS), no mês passado, sobre o papel do artista e da cultura, ao receber o Troféu Tuio Becker no Festival Santa Cruz de Cinema.

A afirmação acima, dita em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, responde ao questionamento sobre a mensagem política do seu novo projeto, Poeta Bélico. Recentemente, o ator divulgou os nomes dos colegas Alejandro Claveaux e Renato Góes para interpretarem o Poeta e o Guerrilheiro, protagonistas da trama deste que será o seu primeiro longa-metragem como diretor.

O filme, que será rodado na Paraíba, marca sua estreia no formato com uma obra autoral, ambientada em um mundo pós-apocalíptico devastado por guerras civis, catástrofes e pandemias, onde o que resta da humanidade se move entre a aridez do deserto e os escombros de sua própria barbárie. Nesse cenário marcado por efeitos do ódio, um violento Guerrilheiro é um dos últimos sobreviventes, obcecado em desvendar a localização de um sítio misterioso. No caminho, encontra um pacífico Poeta, que guarda de memória as poesias e as canções do seu povo.

“O texto do Poeta Bélico encarna justamente isso, porque atravessa a existência desses dois personagens que se debatem, se confrontam; reflexos de uma humanidade dizimada não pela dúvida, mas pela certeza. A certeza é, talvez, o maior problema do ser humano; é dela que nascem as guerras, e está aí o mundo como prova. Curiosamente, a ideia veio em 2013, mas permanece atual, talvez até mais relevante hoje. Então, sim, trata-se de um manifesto político”, explica Allan.

Pernambucano radicado no Rio de Janeiro, o artista tem estreita relação com o Rio Grande do Sul: atuou em diversos títulos de outros autores no estado e também desenvolveu projetos aqui, mantendo com a porto-alegrense Fernanda Etzberger a Ikebana Filmes desde 2012. Esta será, inclusive, a produtora que assina o novo longa. Além disso, o roteiro do diretor contou com o tratamento profissional do também gaúcho Ulisses da Motta.
Até o início de junho, o recifense havia passado uma temporada em Porto Alegre filmando Talismã, dirigido por Thais Fujinaga e produzido pela Vulcana Cinema. Para viver Orlando (namorado da protagonista vivida por Fernanda Chicolet), o papel exigia experiência com dança, que Allan adquiriu quando foi finalista do Dancing Brasil, reality show da Record.
Idas e vindas da escrita

Um entusiasta da escrita, Allan Souza Lima, que completará 40 anos em 18 de novembro de 1985, vem trabalhando em um livro há cerca de 5 anos: “Mas não tenho intenção de publicá-lo tão cedo. Ainda quero desenvolver muito a base que considero necessária para abordar minha trajetória com a profundidade que ela exige. O livro, de certo modo, versa sobre essa interseção entre artista e ser humano, sobre o modo como os personagens e a vida artística têm me transformado ao longo do tempo”.
Como o ator define a obra como uma espécie de autobiografia em processo, um registro da sua caminhada, acredita que a termine talvez aos 50: “Afinal, ainda tenho muito a viver, muita história pela frente”.
Desse modo, o pernambucano também não se considera um roteirista propriamente dito: “O roteirista, a rigor, não se limita a narrar experiências pessoais; ele transita por universos alheios, constrói realidades que não lhe pertencem. Eu, por outro lado, sou movido pelo desejo de contar minhas próprias histórias, e, nesse terreno, falo com a propriedade de quem as viveu. Mas seria ousadia da minha parte nesse momento me autodenominar roteirista”.
Sobre o projeto do longa Poeta bélico, Allan conta que tudo começou a partir de uma frase tatuada em seu corpo: “Ter um pensamento bélico da vida não tira o mérito de ser um grande poeta”. Com esse mote, entre 2013 e 2014, começou a desenvolver o argumento, com o intuito de abordar a existencialidade humana sob uma perspectiva guerreira.
“Naquele momento, criei dois personagens, originalmente concebidos como meus alter egos: o poeta e o guerrilheiro. Pensei inclusive em atuar e dirigir, mas hoje, neste projeto, escolhi estar apenas nos bastidores. Desde o início, a estrutura narrativa foi pensada a partir dos 14 passos da Via Crucis, em vez do clássico percurso do herói, usando capítulos inspirados nesse rito. O projeto ficou parado por anos, até que, durante a pandemia, incentivado por minha sócia Fernanda Etzberger, decidi retomar a direção”, relata.
O autor diz que sempre quis dirigir mais, mas a carreira de ator acabava se sobrepondo. “Em determinado momento, li um roteiro do Ulisses da Motta, fiquei impressionado com sua abordagem minimalista, mais silenciosa, e era justamente o tom que imaginei para o Poeta Bélico. Convidei-o a escrever o roteiro a partir do argumento inicial, o que acabou sendo apenas o primeiro capítulo dessa história.”
Allan narra ainda que, nesse processo, houve a colaboração do seu terapeuta, um teólogo junguiano: “Ele nos ajudou a mergulhar simbolicamente em passagens bíblicas, e não por viés religioso, mas como material simbólico. O resultado, acredito, é um texto singular, com a marca do talento do Ulisses da Motta nas 100 páginas que compõem o roteiro”.
Quanto ao enredo do filme ter alguma mensagem religiosa, o artista nega relação direta: “A narrativa bíblica surge no roteiro como um artifício, especialmente a Via Crucis, para refletir a trajetória humana. Somos nós que, como Cristo, caímos uma, duas, três vezes até morrer e, quem sabe, ressurgir”.
Interessante lembrar que as últimas atuações de Allan envolvem, de alguma forma, o universo religioso. Depois de ter aparecido na telinha da Record, entre 2018 e 2019, na novela Jesus, como Judas Galileu, viveu Padre João no folhetim da Globo Amor Perfeito (2023) e, no ano seguinte, interpretou Jesus em Paixão de Cristo de Nova Jerusalém, o maior espetáculo a céu aberto do mundo.
Para o roteiro sair do papel

Em Poeta Bélico, longa de Allan Souza Lima, Renato Góes será o guerrilheiro e Alejandro Claveaux, o poeta. “Claro, isso pode mudar, afinal, talvez um seja alimentado pelo outro, duas manifestações de um só. Vamos mergulhar em dois meses de ensaios, porque acredito que há camadas muito profundas nesses personagens, exigindo uma preparação intensa”, comenta o diretor.
O autor revela o objetivo, ainda, de registrar todo esse processo em um documentário: “Mostrar desde a escrita e a preparação até a execução do trabalho, revelando os bastidores desse percurso. Sobre outros personagens, mantenho ainda sob sigilo, porque tenho a intenção de pegar de surpresa”.
O que não é nenhuma novidade, pelo contrário, é o cenário visual dessa trama: o interior da Paraíba.
Apesar de ter uma significativa carreira no audiovisual, foi com Ubaldo Vaqueiro, o protagonista da aclamada série Cangaço Novo, principal produção nacional do Prime Video, da Amazon, que o pernambucano teve reconhecidos, amplamente, seu talento e sua entrega à arte.
Isso, somado à sua inquietude como criador nas diferentes manifestações artísticas, tem fortalecido seu nome como um dos mais promissores do cenário cultural contemporâneo brasileiro. Essa vivência nas profundezas do Nordeste já rendeu frutos na exposição Sertão Íntimo, com fotografias captadas durante os oito meses de filmagens no Sertão do Cariri Paraibano.
E Allan reconhece que o seu longa será rodado naquele território porque desenvolveu uma relação muito forte com o estado desde que começou a trabalhar com Cangaço Novo. “A estrutura que encontrei lá e o profissionalismo das pessoas que conheci foram decisivos; quero trazer muita gente dessa galera para o projeto, somando forças. E, naturalmente, essa experiência acabou se entrelaçando com a minha própria história, e quero incorporar isso no filme”.
É lá que está situada a “Roliúde Nordestina”, como é chamada Cabaceiras, cidade que tem até um letreiro inspirado em Hollywood. O polo cinematográfico já sediou dezenas de produções audiovisuais.
“Quanto às condições de produção, já temos um patrocinador e um contrato firmado. Estamos ainda captando recursos, mas com o que já conseguimos, o filme já é viável e pronto para sair do papel”, informa Allan Souza Lima sobre seu primeiro longa, Poeta Bélico.
