Nos últimos dias, vem sendo noticiada a possibilidade de extinção do Contrato de Concessão dos Serviços Públicos de Fornecimento de Água e Esgotamento Sanitário nos Municípios do Bloco 2, firmado entre o Estado do Rio de Janeiro e a Iguá Rio de Janeiro S.A., no dia 12 de agosto de 2021.
Através do Parecer 292/2025/AGENERSA/PROC, que consta do processo SEI-480002/008038/2024, a Procuradoria da Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico do Estado do Rio de Janeiro (Agenersa) recomenda a instauração de Processo Administrativo “para verificar a eventual caracterização de hipótese de caducidade da concessão” (Procuradoria Geral da Agenersa, p. 13, 18/06/2025).
Mas o que levou à possibilidade de extinção do contrato – juridicamente classificada como caducidade – com a Iguá em menos de 4 anos de operação, após a euforia observada durante a concessão dos serviços de saneamento no Rio de Janeiro em 2021? Quais os interesses envolvidos na concessão do Bloco 2? Como a sociedade civil pode acompanhar e intervir nesse processo? Essas indagações nos motivaram a escrever esse texto, ainda que não tenhamos respostas definitivas para essas questões.
Inicialmente, cabe esclarecer o que é essa concessão e por que ela é tão importante. O Bloco 2 das concessões regionalizadas compreende a Área de Planejamento 4 do município do Rio de Janeiro – na qual se localizam os bairros da Barra da Tijuca, Recreio e Jacarepaguá – além dos municípios de Miguel Pereira e Paty do Alferes. O que está em jogo, portanto, é a operação dos serviços em uma das áreas mais ricas da metrópole fluminense, de onde a Cedae afirmava retirar a maior parte de sua receita. No leilão realizado em 30 de abril de 2021, a Iguá foi declarada vencedora com um lance de R$ 7,2 bilhões. No dia seguinte, o jornal O Globo publicou uma opinião bastante otimista, sob o título “Leilão da Cedae abre nova era do saneamento no Rio”, informando a arrecadação de R$ 22 bilhões e que os novos investimentos deveriam “resgatar o Rio do pântano que se debate há décadas” (O Globo, 01/05/2021).
Ironicamente, foi esse mesmo jornal que publicou em outubro de 2024 matéria relatando que obras em uma Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) da Iguá estavam secando o lago do Bosque da Barra, colocando em risco a fauna e a flora do local. Recentemente, outra notícia – do dia 25 de junho de 2025 – relatava que a Agenersa recomendava rever a concessão, sob a alegação de que esgoto sem tratamento vinha sendo lançado no mar da Barra da Tijuca.
Segundo o parecer da procuradoria da Agenersa, vistorias técnicas da Câmara de Saneamento (Casan) da agência constataram que a Iguá vinha causando danos ambientais graves em sua área de concessão. Em primeiro lugar, a empresa tinha paralisado a ETE da Barra da Tijuca para realizar um “retrofit”. Com isso, o esgoto passou a ser lançado diretamente no mar através do emissário submarino da Barra – após um “gradeamento grosseiro das elevatórias das bacias contribuintes à ETE”, o que infringe a Lei Estadual 2.661/1996, que exige o tratamento primário. A Iguá tinha licença do Instituto Estadual do Meio Ambiente (Inea) para fazer tal lançamento por 60 dias, mas o dano ambiental se estendeu por mais de 1 ano e, conforme apontou a Casan, não houve justificativa técnica para paralisação integral da ETE. Além disso, a procuradoria destacou a ausência de autorização da Agenersa para a prorrogação da suspensão do tratamento.
Em segundo lugar, foi constatada falha no projeto de rebaixamento do lençol freático, necessário para a realização da obra, o que vinha secando o lago do Bosque da Barra. O Bosque da Barra é uma Unidade de Conservação municipal criada em 1983 para proteger o ecossistema de restinga. O impacto ambiental das obras da concessionária coloca em risco espécies da flora e da fauna local.
Finalmente, a vistoria indicou também a ausência de sistema de tratamento de odores da ETE, comprometendo a qualidade das áreas circunvizinhas. Tal sistema era, de acordo com o INEA, uma condicionante da Licença Ambiental. No entanto, segundo a Casan, razões estritamente econômicas levaram a Iguá a não realizar a instalação.
Esses danos ambientais, somados à omissão da empresa tanto na comunicação dos problemas à Agenersa quanto na apresentação de documentos e licenças obrigatórias, levaram a reguladora avaliar a melhor forma de aplicar uma sanção administrativa. O parecer da procuradoria da Agenersa destaca, ainda, que os procedimentos da Iguá para reforma da ETE da Barra da Tijuca descumpririam cláusulas contratuais e poderiam configurar infração da Lei de Crimes ambientais.
De acordo com o contrato de concessão, são previstas 5 penalidades: advertência, multa, suspensão temporária de participação em licitação, declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública, e caducidade da concessão. A penalidade deve levar em consideração a gravidade da infração – sendo aquelas de caráter doloso e com o potencial de gerar vantagens econômico-financeiras consideradas graves.
Em que pese a importância dos ecossistemas impactados e a conduta indevida da concessionária, a notícia de que a reguladora do contrato recomenda a abertura de processo que pode culminar com a revisão da concessão causa certa estranheza. Em primeiro lugar, porque todas as concessionárias vêm, em alguma medida e ao menos temporariamente, descumprindo a Lei Estadual 2.661/1996. O lançamento de esgotos através do emissário submarino de Ipanema, por exemplo, é realizado apenas com o tratamento preliminar – não passando pelo tratamento primário para reduzir a carga de matéria orgânica no efluente. Em áreas da Baixada Fluminense nas quais inexiste rede de esgoto as águas residuais continuam sendo lançadas nos rios. A solução prevista na concessão para algumas das áreas periféricas da metrópole do Rio de Janeiro é a instalação de Coletores de Tempo Seco (CTS) nas calhas dos rios – ou seja, o esgoto continuará sendo lançado no corpo hídrico que, na ausência de chuvas, será objeto de tratamento.
Deste modo, descritos os motivos que levaram a Agenersa a aventar a solução extrema de caducidade do contrato, passamos ao segundo questionamento, sobre os interesses envolvidos na concessão do Bloco 2. Como anteriormente mencionado, este bloco inclui dois municípios do interior – Miguel Pereira e Paty do Alferes – e a AP4 do Rio de Janeiro. Os bairros da Barra da Tijuca e Recreio são áreas de ocupação relativamente recente e concentram uma população majoritariamente de alta renda e quase homogeneamente branca. A despeito da ocupação recente, ambos têm uma rede de infraestrutura urbana desenvolvida e foram alvo de investimentos em serviços de saneamento desde sua ocupação. Em relação esgoto, todavia, a ausência de tratamento ao longo de décadas passou a ser uma preocupação crescente, em especial pela contaminação do sistema lagunar da Barra e Jacarepaguá.
Assim, uma hipótese a ser considerada é que o processo se deva a aplicação desigual e mais rigorosa da legislação ambiental quando se trata de áreas ocupadas por grupos com determinado perfil – neste caso, de alta renda e composto majoritariamente por pessoas brancas. Nessa linha explicativa, o mesmo não aconteceria em outras áreas, em especial na periferia metropolitana, em mais um exemplo de injustiça e racismo ambiental. Enquanto na AP4 os órgãos vêm exigindo tratamento primário do esgoto antes do lançamento no emissário submarino, para a Baixada Fluminense e São Gonçalo não está prevista, ao menos no médio prazo, nem mesmo a existência de rede de esgoto – o que viria a ser solucionado paliativamente pela implantação de CTS.
Entretanto, cabe uma ponderação a este respeito. Por que o mesmo rigor não está sendo observado em relação ao emissário submarino de Ipanema? O bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro, que tem os serviços operados pela Águas do Rio (grupo AEGEA), tem um perfil de moradores também de alta renda e é considerado uma das áreas “nobres” da cidade. Isso nos leva à segunda hipótese explicativa do que vem ocorrendo nos processos pouco transparentes da Agenersa, isto é, a possibilidade de uma disputa pela área da AP4 entre os grupos que vêm concentrando o mercado do saneamento no país.
Os rumores sobre o interesse da AEGEA neste bloco de concessão e nos serviços de produção da água para a metrópole – operados pela CEDAE – são crescentes, dada a estratégia agressiva do grupo para aumentar sua área de atuação. Recentemente, o consórcio liderado pela AEGEA venceu o leilão da Corsan, no Rio Grande do Sul, e arrematou três dos quatro blocos regionais no Pará. Caso a intenção de ampliação da atuação no RJ se confirme, cabe a pergunta sobre a qualidade dos serviços da empresa nos dois blocos em que já atua.
A Águas do Rio 1 e 4 são líderes em reclamações em órgãos de defesa do consumidor e na Ouvidoria da Agenersa, assim como em ações na justiça. No final de 2024, problemas relacionados à operação de adutoras de água sob sua responsabilidade deixaram o Rio de Janeiro por mais de uma semana sem água em meio a uma onda de calor. O preço de caminhões-pipa disparou e os prejuízos de usuários e comércio foram amplamente cobertos pela mídia. Em ao menos dois eventos, rompimentos de adutoras estiveram relacionados com a perda de vidas humanas.
Dada a insatisfação com os serviços, como os moradores das áreas de concessão podem participar desta discussão? A realidade do saneamento básico do Rio de Janeiro é de sistemática dificuldade de participação e fiscalização popular em relação às atividades das concessionárias. Embora a concessão tenha instituído os Comitês de Monitoramento como espaços de controle social, sua criação pelo Estado do Rio de Janeiro ocorreu com mais de 01 ano de atraso. Os Comitês se constituem como um espaço para a sociedade civil apresentar suas demandas e possibilitam o diálogo entre os diversos atores envolvidos no saneamento – com a participação, por exemplo, da Agenersa, dos Municípios titulares do serviço, do Verificador Independente e do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. No entanto, o que se observa na prática é uma dificuldade de atuação em razão do pouco auxílio prestado pelo governo do Estado do Rio de Janeiro, além da dificuldade de acesso aos processos regulatórios no âmbito da Agenersa.
Por sua vez, a atividade da Agenersa – na linha do que é defendido no campo teórico e prático da regulação – se constitui enquanto uma atuação alheia à participação social na fiscalização dos serviços. Ainda que nos últimos meses se identifique uma desburocratização dos procedimentos regulatórios no âmbito da agência, com a possibilidade de sancionamento pelas Câmaras Técnicas autorizado pela Instrução Normativa nº 128/2024, bem como a delegação de competência para que os Municípios exerçam a atividade fiscalizatória sobre as concessionárias, conforme dispõe a Instrução Normativa nº 133/2025, o diálogo e a escuta aos usuários do serviço permanece incipiente e acaba se limitando à atuação da Ouvidoria. Nos termos do que o Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ) destacou em auditoria externa realizada em 2022 (Processo nº 100805-1/22), o modus operandi da agência apresenta, dentre outros pontos, falhas de transparência na gestão e baixo estímulo à participação social.
Essa realidade não é uma exclusividade da Agenersa, uma vez que a atividade regulatória é pensada como um instrumento “eminentemente técnico” que, na prática, não dialoga com os principais interessados na eficiência do serviço público: a população. Nesse sentido, no influxo desestatizante da década de 1990, Marcus Juruena Souto, então procurador do Estado, já defendia a tese de que as agências reguladoras deveriam tomar cuidado com os discursos da oposição para que não houvesse uma “captura demagógica” em favor dos usuários do serviço. Ou seja, a reduzida oxigenação social da Agenersa é uma exceção no campo regulatório: faz parte, na verdade, um projeto político com aval teórico na esfera jurídica.
Em síntese, os serviços de saneamento básico no Rio de Janeiro, diferente do que as otimistas projeções neoliberais propunham, configura-se hoje como um campo nebuloso, com diversas situações que indicam a sistêmica dificuldade das concessionárias em garantir a universalização do serviço. O reconhecimento de que danos ambientais vem sendo causados na Barra da Tijuca por razões estritamente econômicas confirma o que movimentos sociais, pesquisadores e trabalhadores das empresas advertiram nas audiências públicas da concessão: as empresas estão interessadas em distribuir dividendos aos seus acionistas e isso é incompatível com a garantia do Direito Humano à Água e ao Esgotamento Sanitário, reconhecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2010.
Em relação ao processo ora instaurado pela Agenersa, o que questionamos é a aplicação de critérios mais rígidos e da sanção mais rigorosa neste bloco, ao passo que diversos crimes ambientais são praticados todos os dias em toda a área da concessão das 4 concessionárias.
*Suyá Quintslr é professora do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisadora da rede Observatório das Metrópoles, coordenadora do ECOAGUA – Laboratório de Ecologia Política da Água (UFRJ) e associada ao Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS)
**Juliana Mello de Queiroz é advogada e procuradora do município de Paracambi (RJ). Bacharel em Direito (UFRRJ) e mestre em Direito Constitucional (UFF). Pesquisadora do ECOAGUA e do Grupo de Extensão e Pesquisa Crítica do Direito no Capitalismo (CriDiCa)
*Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
Referência Bibliográfica
QUINTSLR, S., FINAMORE, P., RIBEIRO, C.F.R., AROUCA, M.C., CARDOSO, M., WEBER, I., QUEIROZ, J.M., BONAGURA, E., RISTUCCIA, F. Considerações sobre a concessão dos serviços de saneamento no estado do Rio de Janeiro. Relatório de pesquisa ECOAGUA/IPPUR/UFRJ. Rio de Janeiro, RJ.