Nos últimos anos, o Brasil tem sediado grandes encontros e eventos internacionais, ficando em evidência nos holofotes estrangeiros. Porém, chama a atenção esses megaeventos acompanhados de decretos de operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLOs). Um dispositivo militar herdado do período da ditadura empresarial-militar. Em que o arcabouço de intervenção federal não só articula a estrutura de forças de segurança pública no âmbito estadual e as Forças Armadas, como também autoriza o emprego de poderes de polícia às Forças Armadas durante a implementação do decreto federal.
A Garantia da Lei e da Ordem (GLO) é uma operação realizada pelas forças militares para restabelecer a ordem pública em “situações de grave perturbação, quando as forças tradicionais de segurança se mostram insuficientes”. A GLO é decretada para atuar de forma pontual e em área delimitada com o objetivo de “proteger a população e as instituições” sendo outorgada exclusivamente pelo Presidente da República.
A partir de um levantamento realizado pela Iniciativa Direito a Memória e Justiça Racial (IDMJRacial) e originalmente publicado no Dossiê do Orçamento Público para Favelas e Periferias do Complexo Advocacy, identificamos o histórico de GLOs realizados pelo governo federal.
Entre 2010 a 2021 tivemos 59 operações da GLO no Brasil que custaram R$2,6 Bilhões aos cofres públicos. Não há critérios bem definidos para a utilização deste dispositivo de militarização, trata-se de uma escolha política arbitrária da Presidência.
:: Quer receber notícias do Brasil de Fato RJ no seu WhatsApp? ::
São operações em diversos âmbitos, desde questões do período eleitoral, reunião da Cúpula de Presidentes do Mercosul, a megaeventos, como Rio +20, Copa do Mundo e Jogos Olímpicos, bem como conflitos de terras e conflitos ambientais, envolvendo indígenas e trabalhadores rurais, tentativas de usos de Força de Pacificação, questões prisionais, operações de preservação a ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio – que é algo bastante subjetivo e questionável para o uso e tamanha força pública.
Das 59 operações da GLO, 19% foram direcionadas para áreas do Rio de Janeiro, ou seja, de 2010 a 2021 tivemos 11 operações que mobilizaram 56 mil militares e custaram quase R$ 1 bilhão.
Trata-se de mais um arcabouço estatal punitivista, encarcerador, de produção de morte e altamente lucrativo para a indústria de armamentos e tecnologias de vigilância. Resultando em fortalecimento de uma política de policiamento ostensivo, com conflitos de guerra em ruas e vielas e que não resultam no enfrentamento a violência efetivo, apenas em reforçar a criminalização de pessoas negras, aumentar o encarceramento em massa e dar prosseguimento a aniquilação do povo negro.
Durante o período de intervenção federal e políticas de pacificação nas favelas do Rio de Janeiro, assistimos a uma série de conflitos de guerras entre ruas e vielas, invasões de domicílios, agressões verbais, revistas indevidas em moradores, prisões indevidas e sem mandatos, além de muita censura a comunicação comunitária, como descrito no livro Militarização e Censura – A Luta pela Liberdade de Expressão na Favela da Maré da jornalista Gizele Martins.
Sem contar o acirramento das disputas territoriais, a intensa migração de distintas facções do varejo de drogas para região da Baixada Fluminense e interior do Estado – que já sofriam com as chacinas e a presença de grupos de extermínios – permitiu a consolidação de poder dos grupos de milícias.
Em uma das ações da intervenção federal em 2015, o jovem Vitor Santiago, morador da Maré na noite de 12 de fevereiro de 2015, quando voltava de um jogo do seu time de futebol com outros 4 amigos em um carro, foram alvejados por militares do Exército sem motivo algum. Vitor foi baleado com dois tiros, um atingindo a sua perna, que precisou ser amputada e o outro atingindo a sua coluna, deixando-o paraplégico. Em um dos relatos, Vitor Santiago conta: “de repente eu voltei para casa com uma perna a menos, com uma lesão medular, voltei tendo que aprender a fazer tudo de novo”.
Cúpula dos Brics
Durante os dias 6 e 7 de julho, o Rio de Janeiro vai sediar o encontro da Cúpula do Brics e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva autorizou o emprego das Forças Armadas através da publicação de um decreto que estabelece a operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para a “segurança do evento internacional”.
Entre 2010 a 2021 tivemos 3 operações de GLO para encontros do Brics que custaram R$ 10,5 milhões para os cofres públicos e mobilizaram 6.345 militares. A atual GLO dos Brics não teve seus custos e nem efetivo militar divulgado no decreto federal. O emprego das Forças Armadas ocorrerá em articulação com o Ministro da Justiça e da Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, e em coordenação com os órgãos de segurança pública.
Ademais, o Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, Victor dos Santos, já indicou que solicitará outra GLO para apoio do Exército e da Polícia Federal para retomar territórios controlados por organizações criminosas ligadas ao tráfico de drogas no âmbito da ADPF 635, a ADPF das Favelas, que será discutida com representantes do governo Lula e apresentada ao Supremo Tribunal Federal (STF) até 15 de outubro.
A incidência política popular histórica que as favelas e periferias construíram na Suprema Corte brasileira em defesa do controle da letalidade policial foi completamente atravessada por uma decisão final colegiada dos ministros que determinou a necessidade de um Plano de Reocupação Territorial das Favelas. Um enorme retrocesso e grande equívoco.
Neste momento, assistimos à iminência de uma nova intervenção federal no Rio e a previsão da implementação de novas operações de ocupação nas favelas com um arcabouço bélico ainda mais letal e nocivo, mesmo no âmbito de um governo federal dito progressista.
De esquerda à direita, a política de segurança pública é a mesma: avança a militarização.
*Giselle Florentino e Fransérgio Goulart são Diretores Executivos da Iniciativa Direito a Memória e Justiça Racial (IDMJRacial).
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.