Um ano após as enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul, em abril e maio de 2024, a educação pública ainda tenta se reerguer. Um levantamento da Subcomissão Especial da Câmara dos Deputados revela que mais de 1.106 escolas estaduais, o equivalente a 47,21% da rede, foram atingidas, além de 644 escolas municipais. Estima-se que cerca de 404 mil estudantes tenham sido diretamente afetados. Outras estimativas elevam esse número para 428 mil, considerando interrupções totais ou parciais das atividades escolares.
Os impactos vão além da infraestrutura. Milhares de estudantes, professores e funcionários enfrentam traumas, perdas materiais, insegurança e sobrecarga emocional. O relatório aponta falhas graves na gestão, evasão escolar histórica, colapso emocional e ausência de planejamento diante das mudanças climáticas.
A subcomissão foi criada em maio de 2024, sob relatoria da deputada federal Fernanda Melchionna (Psol/RS) e presidência de Franciane Bayer (Republicanos/RS). O grupo realizou visitas técnicas, audiências públicas e requisitou informações da Secretaria Estadual de Educação (Seduc) e outros órgãos para compreender o cenário educacional pós-tragédia. O relatório, de mais de 350 páginas, foi apresentado nesta sexta-feira (4), na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul.

Falta de dados, escolas destruídas e investimento
As inconsistências nos dados chamam atenção. Enquanto a Seduc contabilizou 1.106 escolas afetadas, o Mapa Único do Plano Rio Grande indicava apenas 770. Em Porto Alegre, o Conselho Municipal de Educação apontou 45 escolas impactadas, enquanto o Ministério da Educação listou 11 escolas afetadas.
Das 1.106 escolas estaduais, 611 sofreram danos estruturais, 78 precisam de reformas e 21 seguem completamente inoperantes. Segundo a Seduc, 89 escolas tiveram algum dano em suas bibliotecas ou salas de leitura. Os prejuízos envolvem perda de telhados, rede elétrica, mobiliário, equipamentos eletrônicos, materiais didáticos e acervos. Muitas seguem sem condições adequadas de funcionamento.
A subcomissão enviou questionário para 2.327 instituições escolares, sendo 935 da rede estadual e 1.392 da rede municipal. No entanto, obteve resposta de apenas 243 instituições, 132 da rede estadual e 111 da rede municipal.
Entre outras, o grupo visitou a Escola Estadual de Ensino Médio (EEEM) Cristóvão Colombo e a EEEM Cândido Godói, onde o térreo foi destruído e as aulas acontecem em locais improvisados. A Escola Municipal de Educação Infantil (Emei) Miguel Velasquez foi submersa. Na Escola Municipal de Ensino Fundamental (Emef) Presidente João Goulart, estudantes dividem espaço com obras inacabadas. Já a Emef Migrantes teve a estrutura condenada e os professores recorrem a auditórios emprestados.
De acordo com o relatório o investimento por estudante, em 2023, deveria ser de R$ 10.953, mas ficaram em apenas R$ 3.281, abaixo da média nacional.

Trauma, evasão e ausência de acolhimento
Não foram apenas as estruturas físicas que desabaram. Estudantes perderam casas, materiais, vínculos e rotina. Professores e gestores relatam sobrecarga, precarização e falta de apoio emocional.
“O acolhimento emocional da comunidade escolar é tão urgente quanto o restauro das paredes das escolas”, frisou Melchionna. “A tragédia não é só física; é uma devastação que atravessa o psicológico de alunos, professores e familiares. Precisamos de políticas públicas que reconheçam essa complexidade.”
O relatório também alerta para o crescimento da evasão escolar. No Enem de 2024, 52% dos estudantes gaúchos faltaram à prova, o dobro da média nacional. Entre abril e dezembro do mesmo ano, foram enviadas 47 mil Fichas de Comunicação do Aluno Infrequente (Ficai) ao Ministério Público Estadual. Destas, 34 mil não obtiveram resposta, indicando um elevado número de estudantes fora da escola.
“Mais de 400 mil estudantes tiveram as aulas interrompidas completamente. Muitos perderam suas casas, tiveram que se mudar, e a falta de busca ativa faz com que eles desapareçam do sistema”, alertou a deputada.
Ela defende ações urgentes como a aceleração das obras, mais transparência, gestão unificada dos dados e apoio à recuperação da aprendizagem. Também criticou a ausência de adaptações climáticas nas obras de reconstrução: “O material usado vira uma sauna no calor”.
Melchionna ainda denunciou o avanço das parcerias público-privadas na educação. “O projeto de entregar 99 escolas à iniciativa privada não resolve os problemas reais. Pelo contrário, prioriza interesses econômicos e ameaça a gratuidade e a gestão democrática da escola pública. Educação pública não é mercadoria e precisa estar nas mãos da sociedade.”

Diagnóstico e continuidade do trabalho
A presidenta da subcomissão, Franciane Bayer, ressaltou a abrangência do documento. “Esse relatório é um raio-x dos impactos. Quando falamos em educação, falamos da comunidade educacional como um todo, e isso inclui saúde mental, acolhimento e reconstrução.”
Segundo a parlamentar, o trabalho não se encerra com a entrega do relatório. Foram apresentados projetos de lei, uma proposta de emenda à Constituição (PEC) e diversos pedidos de informação sobre recursos e obras. “Nós seguimos cobrando o retorno dos requerimentos de informação, inclusive sobre a aplicação dos recursos e a retomada das obras. Ainda há escolas funcionando em locais improvisados, cujas estruturas originais estão condenadas e não podem mais ser utilizadas.”
Conforme pontuou Bayer, a recorrência das enchentes exige planejamento de médio e longo prazo, com possibilidade de realocar escolas afetadas repetidamente. Moradora de Canoas e também atingida, afirmou que escolas são como segunda casa para muitos. “A nossa luta é para que os recursos cheguem efetivamente às escolas, que as obras sejam retomadas e que a atividade escolar plena seja garantida”, enfatizou.
Por fim, a parlamentar acrescenta que a subcomissão também busca a recuperação do currículo escolar. “Que possamos olhar para a educação não apenas pela ótica da infraestrutura ou do aluno e do professor isoladamente, mas como uma comunidade educacional que precisa de atenção e cuidado neste momento.”

Respostas do governo: reconstrução e prevenção
O assessor de Integridade e Atendimento ao Cidadão da Seduc, Guilherme Corte, detalhou as quatro frentes de atuação da pasta: reconstrução, prevenção, currículo e resiliência escolar. “Estamos elaborando um guia de modelos construtivos mais adequados para enfrentar eventos climáticos severos, como telhados reforçados que não precisem ser substituídos a cada vendaval”, afirmou. Citou como exemplo as escolas Francisco de Canoas e Almirante Barroso, cujos projetos contemplam critérios de sustentabilidade e resiliência.
Ele também destacou a elaboração de planos de contingência, com formação técnica para escolas localizadas em áreas vulneráveis. “No segundo semestre de 2025, cerca de 88 escolas receberão capacitação para construir seus próprios planos, envolvendo comunidade escolar, Bombeiros e Defesa Civil. Essa é uma medida inédita para fortalecer a resiliência das nossas escolas.”
Na área pedagógica, a Seduc incorporou ao currículo temas como mudanças climáticas, justiça ambiental e habilidades socioemocionais, com o objetivo de preparar estudantes para os desafios atuais e futuros. Sobre a reconstrução, Corte revelou que cerca de oito escolas ainda não retomaram suas atividades nos prédios originais, e que a secretaria busca soluções junto à Secretaria de Obras e às comunidades.
Em relação à evasão escolar, ele reconheceu que a infrequência no estado está acima da média nacional. Para enfrentá-la, destacou ações como a plataforma Ficai 2.0, que monitora a frequência dos estudantes, e o programa “Todo Jovem na Escola”, que oferece bolsas para estimular a permanência de alunos, especialmente os que precisam trabalhar.
Corte também afirmou que o relatório da subcomissão será utilizado como subsídio para aprimorar as políticas públicas. “Sem dúvida, o relatório nos ajuda a identificar problemas que talvez não estejam nos dados do próprio governo. Estamos abertos ao diálogo com as deputadas e comprometidos em responder às questões levantadas.”

Vozes da comunidade educacional
A deputada estadual Luciana Genro (Psol) elogiou o relatório e defendeu responsabilidade compartilhada: “Não podemos deixar essa tarefa nas costas das escolas sozinhas. É preciso estrutura e apoio do Estado e da sociedade para reverter esse cenário”.
Representante do Conselho Estadual de Educação, Fabiane Cristina Martins de Oliveira ressaltou a importância de ter conselheiros com formação técnica para orientar o sistema com base em dados e normas atualizadas. Ela apontou falhas no monitoramento de ações de educação ambiental e defendeu a revisão da Resolução 363/2021 para garantir mecanismos eficazes de acompanhamento.
A secretária da União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), Alvanira Ferri Gamba, relatou o impacto da chegada de estudantes deslocados: “Recebemos centenas de alunos sem documentação, o que pressiona ainda mais uma rede já sobrecarregada”.
Pela Federação das Associações de Municípios do RS (Famurs), Ismael Horbach cobrou revisão do pacto federativo para ampliar a autonomia financeira dos municípios. “A recuperação da educação exige um olhar atento aos impactos da pandemia e das tragédias climáticas.”
A presidenta do Conselho Municipal de Educação de Porto Alegre, Aline Kerber, alertou para os riscos diante da ausência de monitoramento efetivo. “Precisamos de transparência, planejamento e participação social para proteger a educação pública.”
Propostas em debate
Dentre as principais propostas apresentadas pela subcomissão estão a criação de um protocolo nacional de emergência para a educação; complementação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) para municípios atingidos; valorização dos profissionais por meio de concursos e garantia de piso salarial; ações de busca ativa para combater a evasão; políticas de saúde mental; reconstrução com foco em resiliência climática.
O relatório foi aprovado por unanimidade na Comissão de Educação da Câmara. Segundo Melchionna, o documento já desperta interesse em outros estados. “As mudanças climáticas são uma realidade nacional, e a educação deve estar no centro das respostas do país. Não podemos mais tratar a educação como uma área isolada; ela é parte da solução para o futuro do Brasil.”
