A sociedade venezuelana está moldada em torno da figura de Simón Bolívar. E não de maneira simbólica. Além da imagem do libertador, as ideias da principal liderança do processo de independência do país, que completa 214 anos neste sábado (5), fazem parte da identidade do venezuelano. O legado do libertador também estrutura a política da Venezuela, que tem um processo singular de construção nos últimos 26 anos, ancorado na Revolução Bolivariana.
Para o país, a independência de 5 de julho de 1811 não é somente um processo que mudou o poder constituído. Pela forma como foi construída e, principalmente, pela teoria de Simón Bolívar sobre um projeto de nação, o povo venezuelano foi talhado sobre os preceitos dos chamados “libertadores” e, com o tempo, a imagem de Bolívar se consolidou como um pilar da sociedade.
Mas a forma de o governo venezuelano lidar com Simón Bolívar mudou ao longo do tempo e ganhou, com Hugo Chávez, uma centralidade no debate político.
Após a morte de Simón Bolívar em 1830, o libertador é alçado a um status não somente de liderança política, mas de fundador da pátria venezuelana. Isso consolida sua figura como a mais importante da República nascente e vai, pouco a pouco, construindo todo um país em torno do “prócer”.
O historiador venezuelano Carlos Franco Gil afirma que um dos grupos fundamentais no processo de independência foi a elite crioula ou mantuana, que eram donos de terras e descendentes de espanhóis nascidos na América. De acordo com ele, essa nova elite foi forjada na Guerra da Independência e adota um discurso que coloca a independência como uma epopeia.
“Rafael María Baralt publica o livro ‘Resumo da História da Venezuela’, no começo da década de 1840, e define os parâmetros básicos da história venezuelana, onde o centro da narrativa é fundamentalmente a independência. Como um processo militar e um processo de formação de uma identidade autônoma, que é outro ponto-chave. Uma identidade venezuelana em comparação com o projeto colombiano”, afirmou ao Brasil de Fato.
O projeto colombiano ao qual ele se refere era uma das principais metas de Simón Bolívar, criar a Gran Colombia e unir os povos da América em uma só pátria.
Essa construção surte efeito, e a cultura apropria essa linha narrativa. Músicos, artistas plásticos e peças de teatro começam a retratar a independência como o momento épico venezuelano. Tijolo a tijolo, a sociedade venezuelana vai criando consciência e identificação com o processo independentista e, principalmente, com Simón Bolívar.
Figura que permanece
Em 1876, durante o governo de Antonio Guzmán Blanco, os restos mortais de Bolívar chegam a Caracas ao panteão nacional, espaço reservado para a homenagem aos libertadores. Três anos depois, a moeda venezuelana passa a se chamar Bolívar. Ainda no final do século 19, praças, avenidas e monumentos na Venezuela começam a ganhar o nome de libertador. O imaginário do herói nacional estava construído na Venezuela. Bolívar se torna um grande pilar, e a independência se torna a grande estrutura narrativa.
A transcendência do libertador atravessa o século 20 ainda com uma centralidade nos diferentes governos. Em 1912, a Casa Natal de Simón Bolívar é inaugurada como um monumento histórico nacional. Hoje, o espaço é um museu.
Mesmo durante a ditadura de Marco Pérez Jiménez, a imagem de Bolívar continua compondo a sociedade venezuelana. Com o fim do regime ditatorial, em 1958 os partidos Ação Democrática, Copei e União Republicana Democrática assinam o Pacto de Punto Fijo, para estabelecer mecanismos de alternância de poder sem a esquerda.
Mesmo os governos conservadores e liberais não só mantiveram a imagem de Bolívar, como também usaram como um ator dentro do discurso de um projeto político. Para Carlos Gil, Bolívar passou a ser usado frequentemente como um valor “supra político”.
“Há um tema central na sociedade bolivariana, que é Bolívar. Ou seja, Bolívar realmente se tornou um eixo central. É algo que vem acontecendo desde o século 19, quando começa a se consolidar e se projetar. Os projetos políticos do século 20 usaram Bolívar como um recurso narrativo muito importante. É conhecido como um valor estatal que está além dos governos, é uma figura que permanece”, diz.
Essa valorização, no entanto, ficava mais no campo simbólico e de celebração da memória de Simón Bolívar. Para Carlos Gil, ainda que a sociedade já tivesse a figura do libertador como um referente, poucas das ideias de Bolívar foram adotadas. Exemplo dessa celebração foi o aniversário de 200 anos do prócer. Em 1983, o governo de Luis Herrera Campins organizou uma série de eventos para lembrar Bolívar, e Caracas sediou os Jogos Pan-Americanos daquele ano.
“A questão é que isso contradiz o que o chavismo hoje propõe. Até que ponto os bolivarianos daquela época se preocupam mais com a estética, mais com referências identitárias, do que com valores, por assim dizer, substantivos, que realmente sustentam um projeto político de forma funcional?”, questiona Carlos Gil.
Em 1986 foi aprovada a que talvez seja a lei mais importante na fundamentação de Bolívar enquanto uma figura que constitui as bases da Venezuela: a Cátedra Bolivariana. A partir dessa lei, era obrigatório o ensino da história do libertador no ensino médio de todas as escolas. Seria destinada uma disciplina somente para isso.
Chavismo e a ressignificação de Bolívar
Hugo Chávez é eleito em 1998 e logo em seu primeiro ano de mandato promove uma mudança radical e troca o nome do país para República Bolivariana da Venezuela. A inclusão se deu em meio a um aprofundamento das ideias de Bolívar dentro do Estado. Sinal disso é também o processo político liderado pelo presidente, que passou a ser chamado de Revolução Bolivariana.
O governo incorpora os ideais de Bolívar e revisa os principais escritos do libertador. A união entre os países latino-americanos, o anti-imperialismo e anticolonialismo e a autodeterminação dos povos foram os principais aspectos trazidos pelo chavismo.
A evocação à figura de Bolívar como parte do processo político já era desenhada por Chávez desde muito antes da sua posse. O então militar ajudou a fundar o Movimento Bolivariano Revolucionário 200, em 1982, já como uma articulação política dentro do Exército.
“Desde 1983, um dos fundamentos que Chávez usa com a MBR-200 para implementar a práxis é o processo bolivariano. Isso moldará tudo o que se tornará a proposta política que será finalmente apresentada em 1999, que implicará um processo constituinte. O chavismo vai denunciar, e vai tentar construir seu projeto político partindo do fato de que, de alguma forma, esse fundamento do ideário bolivariano vai além do meramente comemorativo”, explica Carlos Gil.
O colapso do modelo democrático representativo nas décadas de 1980 e 1990 na Venezuela ajudou a impulsionar esse processo. Na década de 90, há uma ruptura absoluta da percepção coletiva sobre a política e a representação, especialmente depois do segundo governo de Carlos Andrés Pérez e do Caracazo. A partir disso, Bolívar ressurge na retórica política como valor moral e referência.
Carlos Gil destaca que, desde que Chávez trouxe a imagem de Bolívar para o centro da política, há uma discussão teórica permanente em torno do que é uma “prática bolivariana”.
“De uma perspectiva de práxis política, até que ponto isso é prático? Uma avaliação é necessária. Quando falamos de diplomacia de paz bolivariana, o que isso significa? Quando falamos de um sistema educacional bolivariano, a que isso se refere? Quando falamos de uma estrutura estatal baseada em ideias bolivarianas, o que é isso? De uma perspectiva política, é mais ou menos isso que essa proposta que surgiu em 1999 está tentando moldar”, conta.
A retomada do debate em torno de Bolívar com o chavismo transcendeu a política e se tornou uma questão perene nas discussões sobre a sociedade venezuelana. A conceituação do bolivarianismo na política não está concluída, mas a proposta dos governos chavistas é manter essa questão viva para construir a ideia de Revolução Bolivariana enquanto o processo está em curso.
“Não lhe dizemos para tornar essas ideias práticas, ou seja, que não se trata apenas de um conceito comemorativo, mas de um conceito prático, funcional, em torno do que é essa proposta chamada República Bolivariana da Venezuela”, conclui Carlos Gil.