Pela primeira vez com 11 países-membros permanentes, o Brics realiza neste domingo (6) e segunda-feira (7), no Rio de Janeiro (RJ), sua 17ª Cúpula de Líderes. A presidência brasileira, exercida neste ano, aposta no lema “Fortalecendo a cooperação do Sul Global para uma governança mais inclusiva e sustentável”.
Ao reunir chefes de Estado num cenário global marcado por guerras, instabilidade econômica e fragmentação dos mecanismos tradicionais de representação, a reunião propõe alternativas. Propostas ainda tímidas, mas politicamente significativas, de acordo com as fontes ouvidas pelo Brasil de Fato para esta reportagem.
Formado por Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Irã, Arábia Saudita, Egito, Etiópia, Emirados Árabes Unidos e Indonésia, o bloco passou a representar 39% do PIB mundial em paridade de poder de compra, 36% do território global e quase metade da população do planeta.
Sua importância vai além da economia: os países do Brics concentram 70% da produção agrícola global e mais da metade da agricultura familiar do mundo. São também líderes na produção de petróleo, gás natural, carvão e minerais estratégicos como as terras raras.
Ausências, guerra e fragmentação do sistema internacional
A reunião ocorre sob tensões geopolíticas agudas. O presidente da China, Xi Jinping, não participará presencialmente e será representado pelo premiê Li Qiang. Vladimir Putin (Rússia) participará por videoconferência, devido ao mandado de prisão expedido pelo Tribunal Penal Internacional. Estarão presentes, entre outros, os presidentes Lula (Brasil) e Cyril Ramaphosa (África do Sul), além do primeiro-ministro indiano Narendra Modi.
Para o economista Paulo Nogueira Batista Jr., ex-diretor do FMI e do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), a diversidade interna e os conflitos geopolíticos externos tornam o momento particularmente delicado. “Os Brics estão numa conjuntura difícil. A deterioração do quadro geopolítico, com a guerra na Ucrânia, as tensões entre China e Estados Unidos e o comportamento do Estado genocida de Israel, cria um ambiente delicado para o grupo”, afirmou ao Brasil de Fato.
Para ele, a ampliação do bloco e o confronto direto de alguns membros com o Ocidente trazem desafios adicionais na formação de consensos: “Você tem três países – Rússia, China e Irã – em confronto com o Ocidente. Os outros sete não. Essa heterogeneidade pode dificultar o avanço do grupo”.
Ainda assim, o Brasil apostou em uma agenda ambiciosa. Os temas centrais da cúpula incluem governança global, financiamento climático, desdolarização, uso de moedas locais, regulação da inteligência artificial e cooperação em saúde pública.
Brasil aposta em reforma das instituições internacionais e protagonismo do Sul
Ao assumir a presidência do Brics em 2025, o governo brasileiro definiu como prioridade a ampliação da cooperação do Sul Global e o avanço de parcerias em áreas sociais, econômicas e ambientais. Para isso, elaborou uma agenda dividida em seis eixos, com destaque para saúde, moedas locais, financiamento climático, inteligência artificial, paz e segurança, e desenvolvimento institucional.
Marta Fernández, diretora do Brics Policy Center, afirma que o Brasil está tentando recolocar os países do Sul Global como atores centrais das transformações multilaterais. Para ela, os seis eixos propostos estão profundamente atravessados pela necessidade de enfrentar desigualdades e repensar a estrutura do sistema internacional.
Fernández lembra que há consenso, por exemplo, na proposta de cooperação em saúde voltada para doenças socialmente determinadas. “É uma política concreta, que responde à realidade de populações racializadas e vulnerabilizadas”, afirmou.
Outro ponto que, segundo a diretora, conecta várias agendas é o financiamento climático. Para ela, a proposta brasileira de uma Declaração dos Líderes sobre financiamento é parte de um esforço mais amplo. “O Norte Global tem responsabilidade histórica. Colonizou, poluiu e agora precisa contribuir mais. Estamos falando de justiça climática”, disse ao Brasil de Fato.
Moedas locais e desdolarização: um caminho para escapar das sanções e da vulnerabilidade
O debate sobre o uso de moedas locais nas trocas comerciais entre os países do bloco também será central. A ideia da desdolarização, apesar de evitada nos documentos por pressão de potências ocidentais, foi retomada pelo presidente Lula, que defende necessidade de uma nova moeda de comércio entre os Brics.
Marta Fernández afirma que esse movimento tem raízes geopolíticas. Ela cita como exemplo o congelamento de reservas russas e a exclusão da Rússia do sistema SWIFT após o início da guerra na Ucrânia. “Os países do Sul viram que suas reservas podem desaparecer de um dia para o outro. Isso gera uma necessidade de proteção, de soberania”, explicou.
O Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), presidido por Dilma Rousseff, tem atuado nesse sentido. A maior parte de suas transações já é feita em moedas locais. Em dez anos, foram aprovados 122 projetos, totalizando US$ 42 bilhões – US$ 7 bilhões no Brasil. Dilma defende que o NDB é um banco feito pelo Sul Global para o Sul Global, controlado por países emergentes, com estrutura horizontal e governança que respeita a soberania dos membros.
Aproximação entre os povos e propostas para os líderes
Raymond Matlala, conselheiro sul-africano no Conselho Popular do Brics, afirmou ao Brasil de Fato que três temas se destacam: a fome, a crise climática e a necessidade de institucionalização do bloco. Ele espera que haja medidas concretas nesses temas. “A fome global é real e precisa ser enfrentada. O mesmo vale para a mudança do clima. E o Brics precisa de um secretariado permanente”, defendeu.
Rita Coitinho, também representante brasileira no Conselho Popular do Brics e integrante do Cebrapaz, chama atenção para os processos menos visíveis, mas fundamentais, de construção de laços entre os povos do bloco. Para ela, o Brics deve ser entendido também como uma articulação política e cultural de resistência à fragmentação global e de afirmação da soberania dos países do Sul.
Ela destaca os avanços na cooperação cultural e científica. “Ano passado, por exemplo, trouxemos uma delegação de músicos que se apresentou com orquestras em São Paulo. Eles prepararam um repertório com peças de todos os países do Brics. Este ano, estamos organizando um festival de artes e, se tudo der certo, também um festival de cinema.”
Rita vê nessas iniciativas a construção de um vínculo real entre os povos: “São coisas que criam cola, geram vontade de pertencer ao bloco, de ter orgulho dele. E isso fortalece o Brics mesmo quando há governos mais hostis. Se uma universidade tem acordo de pesquisa com outro país do bloco, vai resistir à quebra. Se uma fábrica de vacinas é criada em cooperação, a sociedade civil vai defender sua continuidade”.
Ela também vê como estratégica a criação de instrumentos próprios de comunicação e produção digital, diante da atual dependência em relação às big techs. “Hoje somos muito dependentes do Google, da Meta. Os únicos países do Brics que têm autonomia nessa área são a Rússia e a China. Os demais estão vulneráveis. A agenda brasileira inclui propostas para a criação de mecanismos próprios de regulação e soberania digital.”
Por fim, Rita acredita que o Brics pode ser um espaço privilegiado para discutir usos éticos e democráticos da inteligência artificial. “Não se trata apenas de disputar tecnologia, mas de criar modelos que não repliquem desigualdades ou eliminem empregos sem garantias. Essa é uma preocupação real, tanto nos governos quanto na sociedade civil.”
O Conselho Popular do Brics, criado neste ano, participa oficialmente da cúpula e terá três minutos para apresentar suas propostas diretamente aos chefes de Estado. Será a primeira vez que representantes de movimentos populares terão espaço em uma plenária do bloco. João Pedro Stedile, do MST, será o responsável pela fala, ao lado de Matlala e da russa Victoria Panova.
Brasil aproveita presidência para pautar taxação de super-ricos e reforma do FMI
A presidência brasileira do Brics em 2025 tem apostado em dar protagonismo à agenda da justiça fiscal. Durante a reunião dos ministros da Fazenda e presidentes de bancos centrais do bloco no sábado (5), no Rio de Janeiro (RJ), foi aprovada uma declaração conjunta em apoio à criação de uma convenção tributária global sob a ONU. O texto também saúda o “crescente apoio à tributação dos ultra-ricos como medida para promover maior equidade e fortalecer as finanças públicas em todo o mundo”.
O ministro Fernando Haddad defendeu que essa é uma condição essencial para enfrentar a desigualdade global. Em sua fala, apontou que “a reglobalização precisa estar baseada no desenvolvimento social, econômico e ambiental da humanidade como um todo”. O presidente Lula também tem reforçado publicamente o tema, chegando a exibir um cartaz com os dizeres “taxação dos super-ricos” durante um ato popular em Salvador (BA) nesta semana.
Além da justiça fiscal, os ministros aprovaram o documento Visão do Rio para Reforma de Cotas e Governança do FMI, que propõe rever a fórmula de cálculo das cotas e romper com o arranjo histórico que reserva cargos de comando a norte-americanos e europeus. O texto pede maior representação regional e de gênero nos postos de liderança do Fundo.
Para Antônio Freitas, subsecretário de Finanças Internacionais do Ministério da Fazenda, as negociações exigiram habilidade política diante da diversidade de posições internas. Ele ressaltou que, ao operar por consenso, o Brics impõe limites, mas também favorece compromissos duradouros. “Conseguimos aprovar documentos importantes em um contexto de grande heterogeneidade. Isso não é pouca coisa”, disse ao Brasil de Fato.
A expectativa é que os consensos firmados até aqui sejam reforçados pelos chefes de Estado na plenária desta segunda-feira (7), encerrando a 17ª Cúpula do Brics.
A institucionalização do Brics: entre o consenso e a necessidade de coesão
Com a ampliação recente, o bloco duplicou seu número de membros e aumentou a diversidade interna. As decisões, porém, continuam baseadas no consenso, o que significa que qualquer país pode vetar propostas. Isso limita os avanços, especialmente em áreas sensíveis.
Raymond Matlala considera que o Brics amadureceu o suficiente para criar uma estrutura permanente de coordenação. Segundo ele, um secretariado garantiria não só empregos e continuidade, mas também mecanismos de acompanhamento das decisões tomadas.
“Os Brics já amadureceram e precisam de um secretariado permanente. Isso permitiria criar empregos para os povos dos nossos países e garantiria um mínimo de responsabilização”, afirmou. Ele defende que esse órgão ajudaria a acompanhar a implementação das decisões dos chefes de Estado: “Os líderes fazem declarações, assumem compromissos, mas hoje não há quem cobre ou acompanhe. Com um secretariado, seria possível assegurar algum nível de execução dessas decisões”.
Marta Fernández reconhece os desafios, mas considera que o Brasil tenta conduzir esse debate com equilíbrio. Para ela, é importante criar critérios claros para o ingresso de novos membros, sem reproduzir condicionalidades típicas das instituições de Bretton Woods. “A institucionalização é uma forma de proteger o bloco e garantir sua relevância no longo prazo”, concluiu.