Há um ano, em 1º de julho de 2024, José Raúl Mulino assumiu oficialmente a presidência do Panamá, após vencer as eleições com quase 35% dos votos – uma vantagem de quase 10 pontos percentuais sobre seu principal concorrente. Naquele dia, nenhum dos presentes poderia imaginar que, mais tarde, o país enfrentaria uma das crises mais profundas de sua história recente.
Desde então, o governo direitista tem sido marcado por uma política externa que, à custa de parte da soberania nacional, demonstra um alinhamento aberto com Washington. Essa orientação desencadeou um dos ciclos de protestos mais intensos das últimas décadas, aos quais o Executivo respondeu com uma escalada repressiva marcada por graves violações de direitos humanos.
Desde o início de seu mandato, Mulino deixou evidente que adotaria a agenda migratória dos Estados Unidos. Em seu discurso de posse, afirmou que, sob seu governo, o Panamá não seria um país de passagem para migrantes. A mensagem indicava uma política de migração excludente.
Num gesto simbólico, no mesmo dia, o chanceler Javier Martínez-Acha e o secretário de Segurança Interna dos Estados Unidos, Alejandro Mayorkas, assinaram um acordo pelo qual Washington se comprometeu a cobrir os custos de transporte e logística para a repatriação de migrantes que ingressassem ilegalmente no Panamá pela selva do Darién, na fronteira com a Colômbia.
Embora o governo tenha justificado a medida como parte de uma estratégia de segurança nacional, setores da oposição e ativistas denunciaram que ela aprofundava a criminalização da migração e violava tratados internacionais ratificados pelo Panamá.
Pouco depois da posse, Mulino ordenou o “fechamento da selva do Darién” por meio do envio de forças militares e policiais, além da instalação de arame farpado, com o objetivo de impedir a passagem de migrantes por uma das regiões mais perigosas do continente.
Essas medidas geraram críticas imediatas. O governo colombiano de Gustavo Petro alertou que isso apenas exporia os migrantes a riscos ainda maiores. Organizações internacionais de direitos humanos também expressaram preocupação, destacando o impacto negativo tanto sobre os migrantes quanto sobre comunidades indígenas, como os Emberá e Waunana, cujo acesso a terras ancestrais foi restringido.
Reforma da Previdência
Durante a campanha, Mulino afirmou que uma de suas principais prioridades seria reformar o sistema de pensões, algo que governos anteriores tentaram, sem sucesso. Seu governo, por sua vez, avançou rapidamente na aprovação da Lei 462, uma reforma do sistema de seguridade social que entrou em vigor em março de 2025, sem consenso social nem consulta popular.
A lei eliminou o princípio da solidariedade entre gerações e introduziu um modelo de contas individuais, considerado por especialistas e sindicatos como um primeiro passo rumo à privatização do sistema previdenciário. A medida gerou indignação generalizada e deu início a mobilizações massivas lideradas por sindicatos e movimentos sociais.
Como resposta, o governo intensificou a repressão estatal. Durante a jornada de protestos de 13 de fevereiro, foram registradas ao menos 480 detenções.
A militarização do Canal do Panamá e o aumento da presença dos EUA
A escalada da repressão coincidiu com a visita do secretário de Estado dos Estados Unidos, Marco Rubio, que realizou sua primeira viagem oficial como chefe do Departamento de Estado poucos dias antes. Demonstrando a importância que o governo Trump atribuía ao Panamá – país que havia sido alvo de ameaças diretas durante a campanha eleitoral do presidente estadunidense, – Rubio exigiu “mudanças imediatas” na gestão do canal.
Diante disso, o governo panamenho decidiu não renovar o acordo bilateral com a China no âmbito da Iniciativa do Cinturão e Rota – decisão tomada sem justificativas econômicas aparentes, exceto pelo cumprimento das exigências dos Estados Unidos. Rubio classificou a decisão como um “grande avanço” nas relações bilaterais.
Em meio à crescente tensão política interna, no dia 9 de abril o governo de José Raúl Mulino assinou um acordo com os Estados Unidos que permite o envio de tropas estadunidenses ao Canal do Panamá. O pacto foi firmado durante a visita do secretário de Defesa dos EUA, Pete Hegseth, e foi negociado e aprovado sem debate parlamentar ou consulta pública.
A assinatura do acordo provocou forte indignação social. Para sindicatos e movimentos sociais, tratou-se de um atentado à soberania nacional, pois autoriza a permanência temporária de militares dos EUA em território panamenho, além de prever exercícios militares e outras formas de cooperação não especificadas.
Repressão e violações de direitos humanos
Como parte da reação popular, organizações sociais e sindicatos convocaram uma greve geral por tempo indeterminado, iniciada em 23 de abril. Diante do crescente descontentamento, o governo de Mulino optou por intensificar a repressão. O país encontra-se parcialmente militarizado, com forças policiais posicionadas em terminais de transporte, universidades, comunidades rurais e centros comerciais.
A repressão atingiu níveis alarmantes. Dezenas de líderes sociais e sindicais foram presos, inclusive em suas próprias casas. Movimentos indígenas denunciaram perseguições por parte de forças paramilitares, enquanto diversas pessoas foram assassinadas por forças policiais.
Em meio a um apagão midiático, Bocas del Toro – um dos principais focos de resistência popular – tornou-se o epicentro da repressão. Lá, trabalhadores do setor bananeiro, comunidades originárias, professores e servidores protagonizaram bloqueios de estradas e enfrentamentos com as autoridades em uma luta contínua.
No fim de maio, o governo declarou “estado de emergência” na província, suspendendo garantias constitucionais e direitos fundamentais. A medida foi justificada com base no artigo 55 da Constituição, que permite tais suspensões em casos de “perturbação interna”. Além disso, sob o nome de “Operação Ômega”, mais de 1,3 mil agentes repressivos foram mobilizados para a região.
As ações das forças de segurança foram denunciadas por múltiplas violações de direitos humanos, incluindo desaparecimentos forçados, torturas e maus-tratos a pessoas detidas. Fontes ouvidas pela Brasil de Fato na região afirmam que ao menos cinco pessoas foram assassinadas – entre elas, uma menina de dois anos – e outras dez continuam desaparecidas. No momento, grupos de advogados ligados a sindicatos e movimentos sociais estão preparando um relatório para ser apresentado à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Em comunidades indígenas como Ngöbe Buglé e Arimae, na região do Darién, na fronteira com a Colômbia, operações violentas conduzidas pelo Serviço Nacional de Fronteiras (Senafront) e pela Polícia Nacional resultaram no deslocamento forçado de famílias inteiras para áreas montanhosas.
Apesar da repressão, as lutas sociais seguem ininterruptas há mais de dois meses. A confiança da população no presidente despencou e, segundo uma pesquisa recente realizada pela Prodigious Consulting e pelo jornal La Estrella de Panamá, mais de 80% da população considera que o governo Mulino não representa os interesses da maioria. Já o otimismo em relação ao futuro do país caiu de 66,6% para apenas 15,8%.
Visita ao Brasil
Em meio ao conturbado processo de denúncias, Mulino se reuniu com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na última terça-feira (3), em uma agenda bilateral, às vésperas da Cúpula dos Chefes de Estado do Brics. Falaram sobre uma possível viagem do presidente panamenho ao Brasil em agosto deste ano e a visita de reciprocidade, que deve acontecer em 2026.
O presidente brasileiro também afirmou que vai apoiar a negociação de acordo de livre comércio do Mercosul com o Panamá. Em mensagem publicada no X, Lula acrescentou que se empenhará para que esse processo “se inicie rapidamente”.