A estatal russa Rostec inaugurou a primeira fábrica para produção de armamentos na Venezuela. A meta é produzir 70 milhões de cartuchos para o fuzil AK 103, conhecido como Kalashnikov, já neste ano. O movimento amplia a cooperação militar entre os países e mostra uma aproximação cada vez maior entre os exércitos russo e venezuelano em um momento de ameaças à Caracas e à Moscou.
Em um primeiro momento estão funcionando duas plantas para montar as munições com núcleo de aço e outras duas dedicadas à produção de projéteis traçantes e cartuchos de festim para munição de calibre 7,62×39 mm. O objetivo é abrir mais plantas que produzam os próprios fuzis na Venezuela.
“Planejamos a entrada em operação de outros prédios de produção em breve para fornecer o ciclo completo de produção de cartuchos e fuzis de assalto Kalashnikov na Venezuela para o exército, a polícia e outras agências de segurança pública. Este é um passo importante no desenvolvimento da cooperação tecnológica com nosso principal parceiro na América Latina”, disse Oleg Yevtushenko, diretor da Rostec.
A última frase é fundamental nesse processo. A Venezuela é hoje um dos principais compradores de armas russas no mundo e o maior cliente de produtos militares russos na América do Sul.
Essa relação comercial foi construída pelo ex-presidente Hugo Chávez. Ele mudou completamente o armamento das forças armadas venezuelanas, que antes era estadunidense. Ao longo dos últimos 20 anos, todo o aparato militar da Venezuela se tornou russo.
O objetivo de Caracas era reduzir a dependência dos EUA no setor militar em um momento de ataque da Casa Branca contra os governos chavistas.
A nova fábrica também foi idealizada por Chávez em 2005, mas só saiu do papel 20 anos depois. Todo o complexo industrial está em Maracay, dentro da Companhia Venezuelana de Indústrias Militares (Cavim). A estrutura também inclui outras instalações complementares, como estandes de tiro e armazéns para estocar a produção.
A construção da estrutura foi feita pela Rosoboronexport, agência estatal responsável pelas exportações do complexo militar-industrial russo.
Aliança estratégica
Para os militares venezuelanos, a fábrica segue a lógica do ganha-ganha. Do lado de Caracas, os principais benefícios são a ampliação do seu potencial de defesa e a modernização cada vez maior do seu aparato. Já para os russos, a principal vantagem é a aproximação com um cliente fiel e um aliado estratégico na região.
Quando Chávez projetava a construção desta fábrica, em 2005, a Venezuela já havia se tornado o maior comprador de armas russas na América Latina. A partir daí, essa relação comercial cresceu ainda mais. Naquele ano, os dois países já tinham contratos militares assinados no valor de US$ 11 bilhões (R$ 62 bi) e negociavam outros US$ 2 bilhões (R$ 124 bi), segundo a estatal russa Rostec.
Mesmo com o bloqueio, a Rússia enviou em 2018 dois caças TU-160 para a Venezuela e, em 2019, inaugurou um centro de treinamento e manutenção de helicópteros militares no país. Dentro de um projeto de cooperação militar, a Rússia inaugurou naquele mesmo ano um centro de simulação de voo de aeronaves SU-M30, onde pilotos venezuelanos podem treinar para operar esses caças.
Essa cooperação militar se fortaleceu ainda mais nos últimos meses. Em julho de 2024, os russos enviaram navios militares para uma visita de 4 dias ao país sul-americano. O objetivo era aprofundar a “cooperação técnico-militar” entre os dois países, de acordo com o ministro da Defesa venezuelano, Vladimir Padrino.
A incorporação de equipamentos russos ao sistema de defesa venezuelano inclui caças Sukhoi, helicópteros e carros blindados, além de blindados e armamentos convencionais como pistolas e fuzis.
Contra as sanções
Para a agência russa, este projeto representa um desafio às sanções impostas pelos Estados Unidos e pela União Europeia contra os dois países. O CEO da Rostec, Sergei Chemezov, foi sancionado pelos Estados Unidos e denunciou em 2019 que Washington estava interferindo na construção da fábrica de Kalashnikov em Caracas.
A parceria entre Venezuela e Rússia evolui cada vez mais em uma aliança militar. Em maio, os presidentes Nicolás Maduro e Vladimir Putin assinaram uma série de acordos para desenvolver uma “aliança estratégica”. Um dos pontos é uma cooperação para desenvolver estratégias de combate ao terrorismo e o fascismo.
O chefe do programa de mestrado de História Militar da Universidade Militar Bolivariana de Venezuela, Henry Navas Nieves, afirma que o militarismo é importante na relação entre os dois países, especialmente pelo contexto de ameaças externas que Caracas e Moscou vivem.
“O aspecto militar é fundamental, porque sofremos tentativas de ataques que são reiteradamente denunciados com o objetivo de derrubar o governo. Para isso, precisamos modernizar nosso sistema de armas como elemento de dissuasão desses ataques, especialmente das ameaças dos EUA. A Casa Branca já entrou nos ataques de Israel e financiam há três anos a Ucrânia. Nós entendemos que o imperialismo estadunidense tem feito esse movimento aqui, principalmente com a questão do Essequibo”, disse ao Brasil de Fato.
Essa ameaça comum representa, para Navas, o primeiro ponto de uma afinidade política entre os dois países. O segundo ponto são interesses de ampliar as relações com parceiros que podem beneficiar a economia dos dois países. Esses elementos criaram uma aproximação política que elevou a relação entre Rússia e Venezuela para o patamar mais alto das relações diplomáticas.
“Não é a primeira vez que a Rússia apoia a Venezuela. Tem tido uma postura contundente e eles sempre atenderam quando a Venezuela pediu. Inclusive, muito mais do que os países da região, que foram muito mornos para enfrentar os ataques que sofremos. Da região, Cuba, Nicarágua e Bolívia nos defenderam”, disse Navas.
Esse é o segundo projeto da Rostec anunciado na Venezuela em quatro meses. Em março, a estatal russa anunciou a criação de um centro de treinamento na Venezuela para o sistema russo de reservas aéreas Leonardo. Esse foi o primeiro projeto da estatal para questões aéreas na América Latina. O trabalho seria realizado em conjunto com a estatal venezuelana Conviasa. O sistema automatiza os processos operacionais das companhias aéreas.