Um arco-íris humano tomou conta da capital gaúcha neste domingo (13). Partindo do Parque da Redenção, ponto histórico das mobilizações sociais, até a Usina do Gasômetro, mais de 50 mil pessoas participaram da 18ª Parada de Luta LGBT+. O evento, além de combater a LGBTfobia, levou às ruas pautas como a redução da jornada de trabalho, o direito à diversidade, saúde, moradia e educação.
Casados há quase 17 anos, o gerente de vendas Jarbas Bittencourt e o fotógrafo Mikael Mielke são os primeiros pais homoafetivos do Brasil a terem uma filha com o DNA dos dois, por meio do processo de barriga solidária. A pequena Antonella, de apenas um ano e dois meses, foi gerada com o óvulo da irmã de um dos pais e o sêmen do outro, em fertilização in vitro. A gestação foi possível graças à amiga do casal, Jéssica Koenig Pereira, que emprestou o útero para que o sonho da paternidade se realizasse.
“Estávamos com 13 anos de casados quando decidimos que era hora de realizar esse sonho. A Jéssica, nossa amiga, emprestou seu útero para gerar a nossa filha”, relatam. Presentes à Parada de Luta, Antonella chamou atenção com roupas coloridas combinando com as dos pais.

Bittencourt conta que a chegada da filha foi um divisor de águas. “Foi um marco. Pudemos mostrar à sociedade a naturalidade das coisas. Hoje temos uma família constituída e o nosso sonho realizado. O Papai Mica sempre teve esse desejo mais forte, e eu embarquei junto. Hoje, não vivemos um minuto sem a nossa filha. Somos muito felizes e realizados.”
Mielke reforça: “Sempre quis ser pai, desde pequeno. A Antonella chegou para transformar nossa vida para melhor. Eu já era feliz com o Jarbas, mas depois dela, o amor e a felicidade só cresceram.”

Apesar da alegria, o casal também enfrenta desafios. Bittencourt denuncia o preconceito. “A gente sofre muito, não só no nosso estado, mas no Brasil inteiro. Somos influenciadores, temos o Instagram ‘2Pais da Antonella’, e recebemos muitas mensagens preconceituosas. Mas esse é o nosso propósito: mudar essa realidade. Não queremos ser aceitos, queremos ser respeitados.”
Mielke observa as diferenças regionais: “Estivemos na Parada de São Paulo na semana passada. Lá parece que o preconceito não existe. Já aqui no Rio Grande do Sul, as pessoas são mais tímidas, menos caracterizadas. Quando aparecemos com roupas coloridas, chama atenção, mas também atrai olhares de repúdio. É triste.”
Natural de Bento Gonçalves, ele pontua que o Interior ainda é mais conservador. “Claro que há diferenças entre Bento e Porto Alegre, mas o Interior continua mais fechado.”
Para Bittencourt , o essencial é o respeito à diversidade. “Ninguém precisa aceitar nada. O que precisamos é respeitar as diversas formas de amor e de família. E são muitas. Assim como respeitamos as pessoas, queremos ser respeitados.” E deixam um recado: “Não desistam dos seus sonhos. Corram atrás, porque tudo vale a pena. A chegada da nossa filha perpetuou o amor que já existia dentro da nossa família.”

Abraços que acolhem: solidariedade na Redenção
Com um cartaz oferecendo abraços, a artesã Jaqueline Franco Casagrande e o consultor em tecnologia Diogenes Casagrande marcaram presença na Parada com um gesto simples, mas poderoso.
“Estou aqui apoiando a minha filha e trazendo o abraço de mãe para toda essa gurizada – e adultos também – que não recebem esse carinho em casa”, disse Jaqueline. “É uma troca. Ainda há muito preconceito. Muita gente jovem, inclusive, que não é acolhida pelos pais, que muitas vezes nem sabem da sexualidade deles. Tem muita gente que chora ao receber um abraço. Eu também ganho com isso e levo essa energia pra casa.”
Diogenes reforça: “É uma sensação muito boa poder acolher e ser acolhido também. Vim para apoiar essa meninada, que é fruto de muitos anos de luta de uma geração inteira.”

Eles relatam que a aceitação da filha aconteceu de forma natural. “Em casa, sempre foi tudo muito aberto. A gente ama a pessoa, não a sexualidade. Eu proíbo a violência, eu proíbo a guerra e libero o amor.”
A filha, Maria Gabriela Franco Casagrande, de 23 anos, celebra o apoio que sempre recebeu. “O melhor do processo de aceitação com meus pais é que eu realmente não precisei ‘me assumir’. Desde criança meu pai me chamava de ‘sapatilha’, um sapatão pequeno, brincando. Mas é isso: deveria ser natural. As pessoas não deveriam precisar sair do armário. Héteros não fazem isso, por que nós precisamos? A gente só é o que é.”
Sobre o papel dos movimentos e paradas LGBT+, ela acrescenta: “Eles ajudam muito. Ainda mais agora, com o avanço do conservadorismo. Parece que a luta nunca termina. Por isso é tão importante estar sempre presente, resistindo todos os dias.”

“Saiam das calçadas. Hoje é dia de tomarmos as ruas da cidade”
Ainda durante a concentração, o evento prestou homenagem a memória da apresentadora da Parada, Sylvinha Brasil, assim como fez a entrega de troféus a apoiadores da diversidade sexual. A premiação foi entregue pelos ativistas e apresentadores Gaio Fontella, psicanalista, e Vagner Oliveira, advogado especialista em direito homoafetivo.
Por volta das 15h30 os caminhões de som saíram da Avenida Setembrina, ao lado da Redenção, rumo a Usina do Gasômetro. Durante o trajeto que durou 1h45, músicas foram permeadas pela reivindicação de direitos como Brasil, tema de abertura da novela Vale Tudo, na voz de Gal Costa, momento que se destacou a soberania nacional.
Já músicas como Voando pro Pará, de Joelma, músicas da Xuxa, clássicos como I Will Survive, de Gloria Gaynor, entre outras, animaram o público. “Saiam das calçadas. Hoje é dia de tomarmos as ruas da cidade”, clamavam os apresentadores. No trajeto transeuntes manifestavam apoio.

Bancada Arco-Íris cobra políticas públicas para a população LGBT+
As eleições de 2024 trouxeram um marco para Porto Alegre: a formação da primeira bancada LGBTQIA+. O resultado acompanha o crescimento do número de candidaturas em todo o país. Segundo levantamento do Instituto VoteLGBT, 225 pessoas autoidentificadas conquistaram cargos, incluindo três prefeituras.
Presente na Parada, a vereadora Natasha Ferreira (PT) criticou a ausência de políticas públicas, mesmo com o estado tendo um governador assumidamente gay. “É extremamente precário. Boa parte dos ambulatórios ainda é mantida por emendas parlamentares ou por parcerias com universidades federais, como em Rio Grande. Em Porto Alegre, apenas um ambulatório é mantido pelo poder municipal, outro pelo Grupo Hospitalar Conceição (GHC), que é federal, e o da Restinga luta para sobreviver. A política de segurança é muito aquém do necessário. A de educação pública quase não existe. Falta formação para os servidores.”

Ferreira defende a construção de políticas públicas baseadas em dados. “Quantas pessoas LGBTQIA+ vivem aqui? Quantas estão empregadas? Quantas sofrem violência? Que tipo de violência? Só assim conseguiremos formular políticas públicas de verdade, e não apenas medidas paliativas.”
Para a parlamentar as paradas são importantes. “A gente ainda quer que nós possamos ter um ano inteiro falando sobre pautas LGBT específicas todos os meses e que as paradas sejam o desenrolar de uma agenda política que politize a cidade. Até porque a gente acredita que festa também é política.” Ela também celebrou a representação na Câmara. “Porto Alegre é hoje a única capital do país com duas travestis eleitas. No meu caso, atuo também por outras pautas, como o acesso à água pública, e pela inclusão da população LGBT no centro das decisões sobre orçamento.”

A vereadora Atena Roveda (Psol) alertou para o agravamento da vulnerabilidade da população LGBTQIA+ no estado. “Desde a pandemia e das enchentes, o acesso aos direitos básicos como saúde, moradia e emprego se tornou ainda mais difícil. A contradição é termos um governador que se diz gay, mas com pouquíssimos instrumentos de políticas públicas.”
Roveda defendeu a mobilização coletiva. “Estamos em um momento bem complexo. Entendemos que as paradas ou qualquer esforço que exista na sociedade gaúcha para reunir as LGBTs, as famílias das LGBTs, instituições que apoiam, é importante. Esse evento marca um processo de luta, da retomada do acesso ao básico. A minha mensagem é de esperança. Existe forma de construir uma sociedade plural. Só queremos viver, trabalhar, ocupar espaços e ser felizes.”

Atena também comentou o conservadorismo gaúcho: “Porto Alegre tem especificidades demográficas e históricas que impactam essa agenda. Temos dificuldade em unificar territórios, especialmente depois das enchentes. É preciso entender que a pauta LGBT é parte da pauta da população em geral.”
Parada como ato político: resistência e visibilidade
O vereador Giovani Culau (PCdoB) afirmou que a parada é um espaço de resistência frente à ascensão da extrema direita. “A população LGBT tem sido alvo dessa onda conservadora. A parada é mais do que celebração: é instrumento de luta. Nunca aprovamos no Congresso um projeto de lei que garanta nossa cidadania, e os poucos avanços estão sob ameaça.”
Culau conectou a pauta LGBT a outras lutas sociais: “Estamos aqui também contra o genocídio em Gaza, pelo fim do trabalho precarizado 6×1, contra o imperialismo. A soberania nacional também passa por nós. A população LGBT sempre esteve na linha de frente dessas lutas.”

Ele destacou o caráter seguro do evento. “Vivemos no país que mais mata pessoas trans. A parada é um espaço seguro para sermos quem somos, expressarmos amor, afeto e resistência. É bonito ver famílias inteiras na Redenção fortalecendo essa luta.”
A vereadora Grazi Oliveira (Psol) reforçou que o Rio Grande do Sul é um estado marcado por machismo, racismo e homofobia. “A parada é um ato político que traz visibilidade às nossas lutas. Há uma ausência profunda de políticas públicas e um abandono por parte do Estado. Precisamos resistir e ocupar espaços.”
Conforme pontua Oliveira, ser diferente hoje na sociedade incomoda. “A gente tem que resistir. E uma das formas de resistir é estar aqui, esse momento de parada, fazendo com que a comunidade possa nos ver, nos reconhecer e nos respeitar.”

“Vivemos numa sociedade que prega um modelo único de família. Nós defendemos a relação familiar pautada no amor. E o amor acontece de várias formas, um exemplo, são os pais que vimos aqui, defendendo e ofertando abraços para todo mundo. Precisamos romper com estigmas e vencer o preconceito”, conclui Oliveira.
Um dos coordenadores e apresentadores da Parada de Luta, Roberto Seitenfus, do coletivo Desobedeça, reforçou o caráter político do evento. “A Parada de Luta é uma expressão da luta do movimento LGBT. O país é o que mais mata LGBT no mundo, e não temos uma lei aprovada no Congresso. Só o Judiciário reconhece nossos direitos.”
Sobre o RS, ele destaca avanços e desafios. “Não basta ter um governador gay, é necessário ter política pública. O estado foi pioneiro em incluir travestis e transexuais nas cotas de concursos, mas precisamos avançar. Precisamos de serviços públicos preparados, uma Brigada Militar qualificada e um mercado de trabalho que acolha. A bancada LGBT é uma conquista, mas também uma resposta ao avanço da extrema direita. Precisamos de paradas mais conscientes, que elevem a consciência e levem a luta para escolas, universidades e além da nossa bolha.”






