O PL da Devastação (Projeto de Lei 2159/2021) que tramita no Congresso Nacional desde 2004 e busca instituir uma Lei Geral do Licenciamento Ambiental no Brasil é uma porteira aberta para a ampliação de desastres ambientais e representa a intensificação da crise climática antropogênica.
Uma demanda de setores empresariais (indústria, elétrico, agro) por agilização nos processos de licenciamento ambiental, o PL é um tiro no pé dos demandantes. Ao comprometer o processo técnico e científico dos licenciamentos ambientais, o resultado acabará sendo a insegurança jurídica para empreendedores sérios e financiadores comprometidos com uma sociedade sustentável. Embora sua motivação teórica seja a de garantir maior previsibilidade aos empreendedores, a simplificação e o enfraquecimento dos controles podem levar à aprovação de projetos com significativos impactos ambientais. Consequentemente, esses empreendimentos tornam-se vulneráveis a sanções administrativas, inquéritos e ações judiciais, aumentando a instabilidade jurídica em vez de diminuí-la.
As diversas percepções sobre os desafios do licenciamento ambiental no Brasil revelam não só a complexidade do debate como também a correlação de forças que influenciam e determinam hoje a posição da maioria no Congresso Nacional. O setor empresarial, por exemplo, frequentemente aponta a morosidade do processo, o excesso de exigências, os altos custos e a insegurança jurídica como obstáculos ao desenvolvimento. Em contrapartida, órgãos licenciadores e organizações da sociedade civil destacam a baixa qualidade dos estudos de impacto ambiental, a escassez de servidores, a fragilidade da participação social e a ineficácia das audiências públicas. Um exemplo desse ponto é o que aconteceu no Rio Grande do Sul com a Mina Guaíba, que teve o projeto arquivado em função da péssima qualidade do Estudo e Impacto Ambiental (EIA) e pela pressão da sociedade através do Comitê de Combate à Megamineração no RS, entre 2019 e 2022.

Uma análise técnica realizada pelos pesquisadores Luís Sánchez, da Universidade de São Paulo (USP), e Alberto Fonseca, da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), confirma a baixa efetividade (tanto procedimental quanto substantiva) e as deficiências na participação pública defendidas pelo PL. Eles concluem que as propostas do PL são “profundamente limitadas”, focando quase exclusivamente em tratar a baixa eficiência procedimental, sem abordar a complexidade e a diversidade dos desafios apresentados, nem a harmonização e integração de regulamentos entre os entes federativos.
Uma das maiores preocupações em relação ao PL 2159/2021 é sua proposta de nacionalizar modalidades simplificadas de licença, como a Licença por Adesão e Compromisso (LAC) – o autolicenciamento – e a Licença Ambiental Especial (LAE), além de prever diversas isenções para empreendimentos. A LAE federal, se aprovada, servirá como uma espécie de salvo conduto para o PL 218/2023, apresentado pelo deputado estadual do Rio Grande do Sul Gustavo Victorino (Republicanos), tendo em vista que uma lei estadual não pode ser mais permissiva que uma federal. Além desse PL 218, outros já foram aprovados pelo Parlamento gaúcho, inclusive o que libera as Áreas de Preservação Permanente para construção de barragens para o agronegócio. A destruição vai sendo liberada a conta-gotas, sem que a população se dê conta e para que continue, sem saber, elegendo os destruidores do Rio Grande.
No entanto, a fragilização da resiliência natural aqui no Rio Grande do Sul já vem acontecendo há várias décadas, o que tem ampliado a degradação de nossos biomas Pampa e Mata Atlântica. A degradação das paisagens naturais se dá, principalmente, através do avanço das lavouras de soja, pinus e eucalipto para exportação. Esse avanço é respaldado por forte presença de representantes do agronegócio no Parlamento e de influências no Governo gaúcho, que já demonstrou ter olhar míope para o que entende por desenvolvimento. A desproteção ambiental liderada pelo governador Eduardo Leite, ainda em seu primeiro mandato, com centenas de alterações no Código Estadual do Meio Ambiente, é um indício de que a prioridade não é a precaução nem a proteção ambiental.
Tais medidas, no conjunto, aliadas ao enfraquecimento da participação pública e da atuação de órgãos intervenientes nacionais (como Funai e Iphan), comprometem diretamente a aplicação do Princípio da Precaução. Este princípio, essencial na gestão ambiental, exige que a incerteza seja considerada na avaliação de risco e que, diante de ameaças de riscos sérios ou irreversíveis, a falta de certeza científica total não seja utilizada como justificativa para postergar medidas eficazes para evitar a degradação ambiental. Ao facilitar a dispensa ou a flexibilização da avaliação de impacto ambiental, o PL ignora a necessidade de avaliar alternativas e a participação democrática, transferindo o ônus da prova do proponente para o ambiente e a sociedade, o que contraria a essência precaucionaria. O autolicenciamento, ou LAC, pode ser, inclusive, comparado à automedicação, sendo considerado uma grande irresponsabilidade e falta de compromisso com a sociedade, um verdadeiro charlatanismo ambiental.
Além disso, o projeto, que é criticado por “olhar para o passado”, se concentra em aspectos procedimentais e informacionais típicos das décadas de 1980 e 1990, ignorando requisitos regulatórios cruciais para o futuro socioambiental brasileiro. O que os defensores do PL da Devastação não percebem é que são eles que miram o futuro dando passos para trás.
Conforme identificaram os pesquisadores da USP e da UFOP, o texto do PL não aborda a necessidade de avaliação ambiental estratégica, o combate às mudanças climáticas (mitigação e adaptação) ou a consideração de limites ecológicos no licenciamento, temas já incorporados na legislação de outros países como Canadá, Austrália e União Europeia.
Outro ponto grave é a ausência de critérios gerais em uma lei que se intitula “Lei Geral”. Em vez de harmonizar e integrar os regramentos entre os entes federativos, o PL mantém e pode agravar a fragmentação de regras. Ele delega aos estados a definição de tipologias de empreendimentos, critérios de porte e potencial poluidor, e requisitos de avaliação de impacto, o que já cria profundas diferenças de rigor entre as unidades da federação, podendo gerar até uma concorrência antiambiental, além de facilitar a interferência política. O exemplo de Minas Gerais, apontado pelos pesquisadores, onde os critérios para atividades agrícolas foram drasticamente alterados (de 100 ha para 1000 ha como “pequeno porte”) sem base empírica, demonstra como essa lacuna expõe o sistema a mudanças infundadas que beneficiam setores econômicos específicos em detrimento da proteção ambiental e da segurança jurídica. Essa falta de precaução, somada a mudanças legislativas flexibilizadoras, é apontada como um fator que contribuiu para catástrofes como as enchentes no Rio Grande do Sul, que em 2024 vivenciou o maior desastre natural da nossa história recente, com chuvas de duração, intensidade e abrangência territorial nunca antes observadas por aqui. Além das enxurradas e da elevação dos níveis de diversos corpos d’água, o evento extremo produziu enormes movimentos de massa, com deslizamentos que deslocaram milhões de toneladas de sedimentos e deixaram cicatrizes que mantêm elevado o risco de desastres mesmo com chuvas menores.
Em suma, o PL 2159/2021, ao focar na agilidade superficial e na simplificação sem embasamento técnico-científico, compromete a essência preventiva do licenciamento ambiental e fragiliza os mecanismos de controle e participação social. Isso pode levar à desvalorização do licenciamento como instrumento de garantia para financiamentos e investimentos, à ampliação da insegurança jurídica e à diminuição drástica de sua eficácia no controle de impactos e riscos de degradação ambiental.
Ao subestimar os potenciais impactos e superestimar a capacidade fiscalizatória dos órgãos, o projeto incentiva um modelo de desenvolvimento econômico obsoleto, reminiscente das décadas em que obras eram implementadas aceleradamente, gerando impactos adversos sem a devida prevenção, mitigação e compensação. Por todos esses motivos, e para salvaguardar a proteção do meio ambiente e a saúde da população em face de um cenário de eventos climáticos extremos cada vez mais frequentes e intensos, este Projeto de Lei, em sua forma atual, deveria ser rejeitado, dando lugar a um debate mais aprofundado e baseado em evidências que realmente promova um desenvolvimento ecologicamente sustentável e equilibrado para o Brasil. Afinal, olhar para frente andando para trás é perigoso e nada recomendável.
*Heverton Lacerda é presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan).
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
