Eu tenho uma severa dificuldade de noticiar a morte de um poeta. Nesse mundo de hoje, a existência já é tão difícil, que deveria existir uma lei ou decreto que proibisse solenemente os poetas de morrer. Mas infelizmente não é tão simples. E nessa noite perdemos o Mario Pirata.
Mas façamos um parêntese já, de saída, porque Mario não morreu, encantou-se. Foi daqui pra lá, poetar naquele lugar pra onde vão as crianças, os bichinhos e toda gente de alma boa. Não sei dizer com certeza como é, mas sei que tem cores, brinquedos, instrumentos musicais, roupas cênicas, palco, picadeiro… Porque se na vida Mário fazia de qualquer lugar um palco e de qualquer instante um verso, não poderia ser diferente agora, nesse céu dos encantados.

Mario Augusto Franco de Oliveira, mais conhecido como Mario Pirata foi poeta, professor, arte-educador, teatreiro e brincadeiro. “A brincadeira é coisa séria”, me disse certa vez, com sua capacidade ímpar de produzir frases de efeito divertidas. “Mas não se preocupe, não tem problema, eu trabalho com poemas”, completou, com as caretas expressivas, o sorriso rasgado e um páh no inseparável pandeiro. Costumava dizer que nenhuma feira de livros era feira de livros completa se não tivesse no seu palco e nos seus corredores o Mario brincando com as crianças e, também, com as crianças que ainda existem dentro da gente.

Nas referências compartilhadas sobre as primeiras palavras publicadas, sempre citava que não foram em livros impressos e bem ilustrados, mas nas saudosas folhas mimeografadas e compartilhadas ainda cheirando a álcool e tinta de matriz. Desde lá, trazia consigo um quê de anarquista, gostava de provocar a austeridade das coisas sisudas. A brincadeira era sim, um ato de resistência contra tudo e todos que faziam do mundo essa coisa estranha que aí está. Fará falta o nosso poeta.
Ficam conosco seus textos, publicados mais de dezena de livros. As palavras compartilhadas nos dedos de prosa nas feiras e saraus. As entrevistas onde não se preocupava em responder perguntas deixando provocações. “Hoje, o que eu sei de poesia, estou aprendendo com as crianças”, disse ao Universia. “Elas têm uma capacidade de brincar, uma disponibilidade para inventar coisas muito fortes e isso é muito importante para a poesia. Procuro observar e absorver”, completou.

Entre suas principais publicações estão: Um pé de vento de nome Huá (1981); Calcinha rosa na cadeira de balanço (1988); As minhocas também amam e mamam (1989); Cambalhota (1992); Os dois amigos (1996); Bicho-poesia (1997); O fazedor de balões (2001); A magia do brincadeiro (2002); A volta do bicho-poesia (2003); Poemeninos (2009); Versos para namorar 1, 2, 3 (2011); Asaladeauladapoesia (2011) Poemas de amor adolescente – Antologia (2011); e Ventonaveia (2014).
Em sua publicação mais recente, Ciomacio, reúne uma coletânea de tankas, haicais, haikus, pequenos versos e inventorias. “Para quem já foi holofote, ando meio toco de vela, mas ainda volto a ser fogueira”, escreve num trecho do livro, disponível no site da editora Libretos.
Filosofia, arte, poesia e riso
Mario cursou Filosofia na PUCRS e na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). Fez cursos de dança, teatro, música, psicomotricidade e recreação terapêutica. Dividiu-se entre o mundo da poesia como literatura e a atuação como arte-educador e animador de eventos. Na década de 1970 também trabalhou com teatro, participando do grupo de vanguarda Ói Nóis Aqui Traveiz. Ainda escreveu peças para os grupos de teatro de bonecos Caixa do Elefante de Porto Alegre e Entre Linhas de Novo Hamburgo. Criou e apresentou espetáculos em parceria com o músico Marcelo Fornazier, a atriz e diretora Deborah Finocchiaro, e a compositora e cantora Karine Cunha.

Como performer seu trabalho foi principalmente voltado para as crianças e jovens, aliando literatura, declamação, contação de histórias, canto e brincadeira, atuando em teatros, feiras, saraus, instituições do governo, escolas, ruas e praças e espaços culturais diversos. Também se apresentava como recitador de poesia e cantor para púbico adulto. “Artista sublime na arte da intervenção poética. Domina ritmo, ludibria lindamente com sorrisos e olhares, pandeiros e cantares próprios de quem se sente à vontade no palco”, definiu o pesquisador Richard Klipp.
E aqui volto a escrever, lembrando as palavras de Mario em uma publicação em seu perfil no Facebook, em abril passado, quando pedia para que as doenças que lhe acometiam fossem remetidas de outras partes do corpo para o coração, porque nele confiava a capacidade de luta. Neste breve texto deixou uma despedida antecipada: “Sei que carrego a justa medida que mereço, não me arrependo de nada, ganhei muita coisa boa da vida, tive as oportunidades justas para o tamanho que tenho, para a força que possuo”.
Obrigado por tanto, Mario Pirata, brincadeiro que ensinava que a palavra também é brinquedo. E que brincadeira, também é instrumento de evolução e revolução. Segue teu caminho, agora entre os encantados, e a gente segue aqui, olhando pro céu e imaginando quais das estrelinhas lá em cima é a tua. Opa, encontrei! É aquela ali, saracoteando lindamente! Não procure o poeta na constelação, ele virou estrela cadente!
* Jornalista do Brasil de Fato RS e do Movimento dos Pequenos Agricultores e Agricultoras (MPA)
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
