Ameaça de morte é a forma de violência que mais atinge comunidades quilombolas no Brasil. Entre 2000 e 2023, foram registrados 430 casos desse tipo pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), segundo o Atlas dos Conflitos no Campo Brasileiro, publicação inédita lançada nesta segunda-feira (21). Os dados revelam um padrão persistente de violações de direitos, com escalada de conflitos nos últimos anos e forte pressão do agro sobre os territórios ocupados tradicionalmente por povos quilombolas.
Ao longo de 24 anos, a CPT identificou 3.017 ocorrências de conflitos envolvendo comunidades quilombolas em todo o país. A maior parte está relacionada a disputas por terra (2.466 casos), seguida por conflitos por água (259). De acordo com o levantamento, além das ameaças de morte, outras formas recorrentes de violência contra quilombolas incluem prisões (69), tentativas de assassinato (50) e assassinatos (48).
A partir de 2016, o número de conflitos aumentou de forma significativa, com o pico registrado em 2020. Desde então, os conflitos por terra têm mantido uma média de 247 casos por ano. “Trata-se de uma luta ao direito de ser, ao direito territorial e como movimento de resistências às tentativas de homogeneização do campo brasileiro”, diz um trecho do Atlas.
O reconhecimento dos quilombolas como sujeitos específicos nos registros da CPT só ocorre a partir dos anos 2000. Até então, essas comunidades apareciam diluídas em outras categorias, como a de posseiros. O avanço da luta do movimento negro e a consolidação de direitos constitucionais impulsionaram a visibilidade das violações sofridas por essas populações, o que também se refletiu nos registros de conflitos da CPT.
Hoje, a população quilombola é estimada em 1,3 milhão de pessoas, segundo o Censo de 2022, mas apenas 4,3% delas vivem em territórios titulados. A ausência de regularização fundiária amplia a vulnerabilidade e expõe essas comunidades à violência cotidiana nos territórios.
De acordo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). há atualmente 600 processos de reconhecimento de terras quilombolas com algum tipo de andamento no órgão. Desde 2023, apenas 59 territórios foram titulados, sendo 38 parcialmente e 25 totalmente.
Conflitos por terra disparam e atingem maioria da população sem título
Embora o Nordeste concentre a maior parte da população quilombola (68%), a Amazônia Legal é a região com mais conflitos registrados: 65% dos casos ocorreram na região, segundo o Atlas. O Nordeste aparece em segundo lugar, com 19% das ocorrências, seguido pelo Centro-Sul (21%).
A maior parte dos assassinatos também está concentrada na Amazônia, com 54% das ocorrências. A região de São Luís (MA) reúne 63% dos casos no estado. No Nordeste, a região de Feira de Santana (BA) concentra quase metade dos assassinatos. Já no Centro-Sul, os conflitos mais graves ocorrem no Vale do Ribeira (SP) e na região metropolitana de Porto Alegre (RS).
Entre os estados, o Maranhão lidera tanto em número de comunidades identificadas (2.025) quanto em ocorrências de conflito (977). Em seguida vêm Bahia, com 1.814 localidades e 339 casos de violência, e Minas Gerais, com 979 comunidades e 212 ocorrências.
Os dados demonstram que o avanço do agronegócio, da mineração, das hidrelétricas e de outros megaprojetos – definidos pelo Atlas como “agro-hidro-minero-carbono-negócio” – são os principais vetores da violência: esse setor é responsável por 60% das ocorrências envolvendo quilombolas. O Estado brasileiro responde por 28% dos casos, por meio de ações diretas ou pela omissão diante das violações. “O Agro é violento, mata e ameaça”, resume um trecho do relatório.
Resistência e luta pelo direito de existir
Apesar da violência, os quilombolas seguem se organizando para defender seus territórios. Entre 2000 e 2023, a CPT registrou 74 ocupações e 216 manifestações realizadas por comunidades quilombolas, além de dois acampamentos. Essas ações fazem parte de uma estratégia de resistência que combina mobilização política e pressão por políticas públicas.
Como destaca o Atlas dos Conflitos no Campo Brasileiro, “os territórios quilombolas constituem-se como formas específicas de uso, ocupação e cuidado com a terra e a água, e expressam modos de vida que se organizam em torno da coletividade, da ancestralidade, da reprodução do bem viver e da natureza”.
O Atlas alerta que a escalada da violência contra quilombolas está diretamente ligada à ausência de titulação dos territórios, à expansão de grandes empreendimentos e à conivência do Estado com os interesses econômicos dominantes. Para os autores do estudo, garantir os direitos territoriais quilombolas não é apenas uma medida de justiça histórica, mas uma condição necessária para a proteção ambiental e a preservação da diversidade cultural do país.