A Assembleia Nacional do Poder Popular de Cuba, órgão legislativo do país, aprovou uma reforma que permite a qualquer pessoa maior de idade solicitar a mudança de gênero em seus documentos de identidade. A nova norma, fruto de anos de luta dos movimentos LGBT+, representa um avanço crucial rumo à autodeterminação de grupos sociais e marca um divisor de águas na história dos direitos das pessoas trans na ilha.
A legislação, aprovada na última sexta-feira (18), estabelece que qualquer pessoa adulta poderá, mediante solicitação pessoal e sem exigências adicionais, alterar a informação na carteira de identidade. No caso de menores de idade, o processo exigirá autorização judicial.
Ao Brasil de Fato, Verde Gil, ativista do Grupo Trans Masculinos de Cuba, afirma que se trata de uma legislação com impacto direto na vida cotidiana de quem faz parte da comunidade.
“Isso representa um avanço na luta contra a violência e a discriminação”, afirma. “Porque garante algo tão básico, mas tão negligenciado: que as pessoas se sintam mais à vontade com seus documentos de identidade.”
Desde 2022, já era possível modificar o nome nos documentos. No entanto, como lembra Verde, “por não ser possível alterar o marcador de sexo, isso acabava gerando muitos problemas práticos e diferentes formas de discriminação em procedimentos do dia a dia.”
Um processo coletivo e participativo
Verde ressalta que essa lei não surgiu do nada. É resultado de um processo coletivo articulado entre o Centro Nacional de Educação Sexual (CENESEX), diversas redes comunitárias e ativistas que participaram ativamente de espaços de consulta e incidência.
“Foi um trabalho exaustivo e complexo, porque percebemos que dentro da própria comunidade existem múltiplas perspectivas. Mas são justamente essas construções coletivas que fortalecem o processo de empoderamento”, explica.
O projeto final, que deu origem à nova lei, nasceu de um longo processo de escutas e consultas, durante o qual foram incorporadas diversas demandas e pontos de vista da comunidade, fortalecendo o texto legal.
Essas práticas de democracia participativa não apenas garantem a inclusão de vozes diversas, como também “reforçam nossa cultura jurídica e oferecem ferramentas para nós, que estamos em situação de maior vulnerabilidade”, afirma Verde.
Com isso, Cuba passa a integrar um grupo ainda restrito de países da América Latina e do Caribe que permitem a prática sem exigências médicas, consolidando-se como referência progressista na região.

Debates e horizontes de inclusão
Apesar do avanço, Verde reconhece que ainda há desafios a enfrentar. O próprio debate revelou a existência de diferentes posições e demandas dentro da comunidade.
“É preciso continuar discutindo temas como a inclusão do gênero não-binário. Há pessoas que preferem que o marcador de sexo nem apareça nos documentos; outras querem que apareça, mas com a possibilidade de registrar um gênero não-binário. Trata-se de encontrar formas de convivência em que todos sejamos respeitados, sem que a identidade ou o sexo sejam motivo de discriminação ou ódio.”
Nesse sentido, Verde destaca como uma das principais conquistas do processo legislativo a abertura de espaços de diálogo e reflexão coletiva. Afirma que “o mais importante não é alcançar um consenso total, mas sim construir uma consciência social mais ampla, que contribua para uma sociedade mais igualitária.”
Os debates sobre direitos de gênero não são novos em Cuba. Nos últimos anos, a sociedade cubana tem participado de intensos processos de discussão sobre a ampliação de direitos.
Um dos momentos de maior efervescência foi a aprovação do novo Código das Famílias, em 2022, que legalizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo após uma ampla consulta popular. O debate mobilizou milhares de pessoas, especialmente jovens, que se engajaram ativamente na defesa do novo marco legal. Esse processo deu origem a inúmeros coletivos juvenis e novas formas de ativismo em prol da igualdade.
Entretanto, também revelou resistências conservadoras e seu enraizamento na sociedade cubana. Ainda assim, a aprovação do Código com 70% de apoio nas urnas refletiu o respaldo majoritário do povo cubano ao avanço dos direitos.
“O próprio debate social serve de pretexto para isso: para que as pessoas compreendam essa diversidade sexual humana e a aceitem”, reflete Verde. “Me sinto realmente muito feliz por termos conseguido abrir espaços que impulsionaram esses avanços legislativos.”