Os povos indígenas vivem um momento importante de luta por território no Rio Grande do Sul, com retomadas em áreas que pertencem ao governo do estado em várias cidades. Diante disso, o Ministério dos Povos Indígenas e o governo gaúcho assinaram um Acordo de Cooperação Técnica para regularizar as áreas, com o repasse dos imóveis como abatimento de dívidas do estado com a União.
Uma dessas áreas é um centro de pesquisas da extinta Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária (Fepagro), em Viamão (RS). São 148 hectares de mata nativa, nascentes de água e espécies ameaçadas do bioma Pampa, além de estruturas, estufas e plantações de pesquisa. O local, há mais de um ano, se tornou a Tekoa Nhe’engatu, retomada ancestral que hoje abriga 57 famílias Guarani Mbyá.

Tudo parecia avançar com o acordo, até que o governador Eduardo Leite, do PSD, enviou à Assembleia Legislativa o Projeto de Lei 280/2025, em regime de urgência. A proposta prevê a doação de mais de 88 hectares da área ao município de Viamão para a instalação de um centro logístico, empresarial e tecnológico.
Rapidamente, a comunidade indígena se mobilizou contra a proposta, e o caso ganhou os noticiários do estado. O cacique da retomada, Eloir Oliveira, ou Verá Xondaro, na língua guarani, ressalta que a proposta é um retrocesso e deixa as famílias preocupadas com a perda do espaço para a construção do empreendimento.
“Toda a nossa tratativa está sendo percorrida na Justiça Federal. Aí, do nada, a gente vê o estado, o governador, criar o PL 280, que vem contra aquilo que a gente já vinha conversando, aquilo que a gente estava construindo com o estado também. Ou seja, ele diz uma coisa pra nós e depois nos ataca. Então, pra nós, foi um ataque”, afirma.
Confira a reportagem em vídeo:
Oliveira destaca que, após a comunidade ficar sabendo do PL, protocolou um pedido de reunião com o governador. “Não tivemos ainda retorno. A gente tem a expectativa de que ele nos receba, pelo menos para esclarecer isso aí, porque não tem como o estado colocar dois caminhos.”
Retomada conta com escola indígena
A retomada Nhe’engatu está bem estruturada. Com apoio, as famílias construíram casas, têm atendimento de saúde e acesso à água fornecidos pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Também cultivam plantações para consumo próprio e contam com uma escola que atende 67 alunos, do Jardim ao Ensino Médio.
A professora Reni Oliveira, moradora da retomada, destaca a superação das dificuldades para manter a escola. Hoje, as aulas acontecem em duas tendas, em parceria com outras instituições. “Este ano a gente conseguiu. Foi difícil, mas conseguimos completar o quadro de professores – professores não indígenas também – porque a gente tem disciplinas de português, matemática, história.”

Responsável pelo ensino da língua guarani para estudantes do Jardim, ela conta que a educação serve para preservar a cultura indígena e também formar a juventude, mantendo vivo o sonho de seu avô, Turíbio Gomes, ou Karaí Nhe’engatu, que significa “homem sábio” em guarani.
“A gente vai em busca de sonhos, trazer melhorias para a nossa comunidade e mostrar para as crianças que o nosso mundo não é só dentro da aldeia, que a gente pode atuar em qualquer profissão – ser professor, professora, médico, enfermeira – sem deixar de ser indígena”, diz a professora.
Rede de apoio para barrar projeto

No dia 19 de julho, a Tekoa Nhe’engatu abriu as portas para um ato de resistência e convidou apoiadores. Presente no ato, a deputada estadual Luciana Genro (Psol) destaca que já houve uma primeira vitória quanto à tramitação: o projeto de lei não será levado à votação na primeira sessão após o recesso, no início de agosto.
“Isso foi importante porque nos dá mais tempo para mobilizar a comunidade, mobilizar os movimentos sociais, para pressionar o governador a retirar esse projeto. Ou, se ele não retirar, termos maioria dentro da Assembleia para derrubá-lo. E isso só vai ser possível com pressão externa mesmo, porque, no dia a dia da Assembleia, o governo tem maioria”, pontua Genro.
Também presente no ato, a deputada estadual Stela Farias (PT) fez duras críticas a Eduardo Leite. Segundo ela, o governo estadual tem colocado interesses imobiliários em primeiro lugar.
“E agora o que a gente está vendo? Os ataques, particularmente em relação a Viamão. Mas tem também as minas do Guaíba, há muitos conflitos ambientais que ficaram muito nítidos agora, a partir do governo Leite, que tem feito sempre uma opção pró-interesses outros, que não os interesses dos povos indígenas ou da população”, avalia.
Área é uma das 28 que integra acordo com União

No dia 22 de julho, ocorreu a primeira reunião do Grupo de Trabalho do Acordo de Cooperação Técnica, com membros dos governos federal e estadual, Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), representantes indígenas e entidades indigenistas. O secretário nacional de Direitos Territoriais Indígenas do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), Marcos Kaingang, esteve presente e afirma que a questão está sendo acompanhada pelo governo federal.
Segundo o secretário, a Tekoa Nhe’engatu está entre as 28 áreas do patrimônio do estado do Rio Grande do Sul com ocupação indígena e que são objeto de litígio no Judiciário, integrando o Acordo de Cooperação Técnica. “Temos acompanhado e articulado permanentemente com a comunidade indígena e feito diálogos com o governo do estado. Assim que soubemos dessa iniciativa do PL, de ceder essa área para outra destinação que não seja os povos indígenas, fizemos contato com o governo do estado, com as secretarias competentes, e também diálogo com as lideranças para buscarmos alternativas e soluções para aquela situação.”
Silvio Jardim, membro da Comissão Especial Indígena do Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH-RS), destaca que a comunidade sequer foi ouvida, o que desrespeita a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. Para ele, o PL causa estranheza em meio à tramitação do processo de conciliação.
“Nos surpreendeu esse PL 280 justamente porque há várias secretarias e órgãos de estado envolvidos nessa negociação para efetivar o Acordo de Cooperação Técnica e garantir, no âmbito de conciliação, inclusive interna, a permanência da comunidade lá. Há também o relatório de qualificação da Funai e a atuação de diversos órgãos no processo judicial que tramita na Justiça Federal. Ou seja, toda a matéria está federalizada no ambiente de conciliação judicial e extrajudicial”, comenta.
Comunidade resiste
Em defesa da permanência da retomada no local, o cacique Eloir reforça que a presença indígena significa a preservação de um território ancestral. “Pra nós, é uma luta importantíssima – não só para o povo Guarani, mas também para a sociedade – porque o que tem de água aqui, a sociedade pode, no futuro, usar também. Então, é importantíssima a questão da retomada, mas sempre trazendo a importância de que é um retorno aos territórios ancestrais. Viamão é um território Guarani.”
Na quarta-feira (23), deputados estaduais se reuniram com o secretário Marcos Kaingang e lideranças indígenas para tratar do assunto. Durante o encontro, o presidente da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, deputado Adão Pretto (PT), formalizou um pedido de audiência pública sobre o PL 280. O pedido será analisado na primeira sessão da comissão após o recesso parlamentar, agendada para o dia 6 de agosto. A expectativa é reunir representantes do governo do estado, do Ministério Público, da Prefeitura de Viamão, da comunidade Mbyá Guarani e de órgãos federais para debater os impactos do projeto de lei e os direitos territoriais indígenas.
O que diz o governo
O governo do estado informou em nota enviada à reportagem que “todas as tratativas são mantidas e o município assume para, em conjunto com a União e de posse da área, reassentar ou regularizar, como consta em contrapartida por parte do município de Viamão”. Destaca ainda que o Projeto de Lei prevê a proteção dos direitos da comunidade indígena, conforme a legislação vigente.
Procurada, a Prefeitura de Viamão não respondeu aos questionamentos do Brasil de Fato.
