Aos 24 anos, um morador do Morro da Cruz, na zona Leste de Porto Alegre, tem seu primeiro filme indicado à categoria nacional de curtas do Festival de Cinema de Gramado. A obra, Aconteceu à luz da lua, conta a história do próprio diretor e roteirista, Crystom Afronário, que até o ano passado conciliava a carreira de cineasta com o trabalho de motoboy.
Apesar de ser estreante no cinema – e da pouca idade – Crystom já vinha se destacando com fotografias de eventos e do cotidiano na periferia da Capital. Ao Sul21, ele falou de sua trajetória até aqui e do filme que disputa o Kikito. Leia a entrevista na íntegra:
Sul21: Você é conhecido nas redes sociais pelas fotografias em comunidades de Porto Alegre e agora você está se destacando como diretor indicado ao Festival de Gramado. De que outras formas podemos descrever Crystom Afronário?
Crystom Afronário: Eu tenho 24 anos e estou na Universidade do Vale do Rio dos Sinos, campus de Porto Alegre, com bolsa de 100% pelo Prouni. Estudo Realização Audiovisual. Mas, antes disso, eu vinha me destacando nas fotografias e também como escritor, compositor de poesias.
A arte sempre veio pra mim como uma forma de liberdade de expressão. O audiovisual chegou até mim junto com as poesias, em 2018, quando eu estava no último ano do ensino médio. Criei um canal no YouTube chamado Justiça Poética, onde eu retratava as poesias de artistas locais, da comunidade. Depois se expandiu para Porto Alegre e depois para cidades metropolitanas. Iniciei fazendo vídeos com um [Samsung] J5, depois adquiri um iPhone, depois comprei uma câmera. Foram passinhos de formiga, até a pandemia. Em 2020 a gente deu uma parada.
Descobri que eu tinha talento para filmar, eu que gravava os vídeos. Eu gravei dois vídeos meus e depois comecei a gravar vídeos de artistas urbanos, para mostrar que não existe somente o tradicionalismo gaúcho. Existem pessoas pretas, periféricas e outros tipos de arte.
Em 2020, antes da pandemia, eu fui pro Rio. Conversei com pessoas da favela da Rocinha e eles não acreditaram que eu morava em Porto Alegre. Não sabiam que tinha periferia aqui. Então comecei a fazer mais trabalho fotográfico. Em 2021, tive uma virada de chave de registrar esses espaços que não eram registrados.
Comecei a querer prestar o ensino superior, que era uma coisa que eu não queria antes. Em 2022, entrei de cabeça nas fotografias e nas filmagens dentro e fora das redes sociais. Para mostrar a comunidade que é o Morro da Cruz, que fica no bairro Partenon. Depois, fui convidado para fazer fotografias de eventos em outras comunidades, como a Cohab Rubem Berta e o Mário Quintana. Consegui minha bolsa no Prouni com a missão de relatar essas vivências das comunidades de Porto Alegre no cinema.
Sul21: O filme Aconteceu à luz da lua tem muito da sua história na inspiração dos personagens, que se dividem entre o ingresso na faculdade e a criação de um canal para viver de arte. De certa forma, você conseguiu conciliar esses dois caminhos na vida real? O que você diria para os jovens que enfrentam o mesmo dilema?
Crystom: A ideia desse filme é justamente fazer esse resgate e mostrar que a gente tem que ocupar esses espaços que a gente mentaliza que não são nossos. A ideia do filme é fazer esse contraponto. O filme tem dois personagens principais, onde eu dividi a minha história em duas partes. Um é o primeiro jovem da família que conclui o ensino médio e vai prestar vestibular, o outro é um artista local que não se imagina no mundo acadêmico. São duas vivências minhas. Hoje, eu sou a fusão disso tudo.
O que eu deixo pra esses jovens é que a gente tem que ocupar os espaços, mas antes disso a gente tem que fazer o que a gente gosta. A ideia desse curta é que as pessoas assistam e saiam da sala de cinema querendo fazer uma diferença na sua vida. É um filme de 20 minutos que eu gostaria muito que os jovens pensassem. É literalmente aqueles filmes para passarem nas salas de aula. Mais para frente, quero muito que também passe nas penitenciárias.
Qual a importância de retratar essas pessoas e eventos na periferia?
Congelar o tempo. Ter memórias. Eu sou um jovem de 24 anos, eu não tenho fotos de como a comunidade era 24 anos atrás. Como eram os becos, os jovens, as casas, e principalmente os sorrisos. Não existem esses sorrisos, principalmente aqui no Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro e São Paulo têm filmes. Nos filmes daqui, eu não vejo como eram as comunidades antes. Se existem, é mais com o olhar de quem não mora dentro de uma comunidade, que é aquele lance de mostrar a vulnerabilidade e a precariedade ou a violência incidente. Não a autoestima, o empoderamento, não existem sorrisos. A ideia de registrar esses eventos nas comunidades é justamente para melhorar a autoestima dos moradores e valorizar quem faz esses eventos. Daqui 5, 10 anos, tem a fotografia que o fulano tirou. Como as crianças estavam naquele dia, estavam felizes? tem uma fotografia ali que menciona isso. Essa é a minha paixão com o audiovisual e a fotografia.
E quais elementos você usa para registrar uma periferia que não seja estereotipada?
O sorriso e o dia a dia. Eu só mostro o que eu vejo. Quem não mora numa comunidade já imagina e vê nos jornais o que acontece lá. Mas quem mora lá, o que será que vai mostrar? Vai continuar batendo na mesma tecla? Acho que eu deveria ir por outro caminho, como morador. Dar autoestima. Muitas crianças e senhoras já me pararam na comunidade para me pedir pra tirar foto. “Eu moro há 50 anos nesse local e não tem uma foto minha aqui”. A pessoa quer se ver. As pessoas não estão se vendo. Essas conversas já me dão mais esperança e sonhos pra continuar.
Voltando ao filme, como foi juntar um elenco estreante para gravar Aconteceu à luz da lua?
Eu tive duas inspirações pra realizar esse curta. A primeira foi o filme Boyz n the Hood (no Brasil, Os donos da rua). A diretor tinha 24 anos, ele foi o primeiro diretor negro a ser indicado ao Oscar em melhor direção e melhor roteiro. Ele gravou a história do lugar onde ele cresceu. A segunda referência foi o filme Cidade de Deus, onde eles fizeram esse laboratório de usar não-atores, porque não existiam muitos atores pretos na época. E tiveram a brilhante ideia de usar pessoas naquele local. O neo realismo me atrai bastante, de contar uma história num local onde tem pessoas que realmente viveram aqueles momentos ali.
Tem um ator que morava no Morro da Cruz, chamado Wagner dos Santos. Hoje ele mora em Gramado e está vivendo da atuação. Quando a gente foi contemplado no edital da Lei Paulo Gustavo eu chamei ele, “preciso de ajuda pra preparar o elenco. eu quero contar uma história que se passa no Morro da Cruz com pessoas do Morro da Cruz”. Ele falou: “Crystom, bora”.
A gente fez audição com pessoas da comunidade. No filme, de 11 atores – eu sou um deles –, tem duas que não moram no morro. Foi muito massa, a equipe era 80% de pessoas que gostariam de entrar no mercado audiovisual – o diretor de arte, a maquiadora, e figurinista, a técnica de som. Eu queria rechear de pessoas que estivessem na sua primeira vez, pra gente dar o nosso melhor. Eram pessoas que queriam se ver na frente da tela e queriam ter a sua oportunidade de mostrar o seu talento.
A indicação do filme no Festival de Gramado é um sinal de que o festival está mais representativo ou você considera que sempre houve espaço para produções da periferia?
Eu acho que ele está mais preocupado, sim. Eu estou com dois projetos no Festival. Além da categoria nacional de curtas, estou competindo na categoria da mostra gaúcha com um curta universitário chamado E depois de fevereiro, onde relato as escolas de samba de Porto Alegre. São histórias negras, invisibilizadas. Eles estão dando marcha pra isso e para jovens talentos. Está sendo uma estreia e tanto pra mim. Estou com dois projetos em Gramado e os dois são símbolos. Os filmes são as mensagens. Além das mensagens dentro do filme, fazer o filme é a mensagem.
Eu não estou pensando nos prêmios, em sair de lá com algum Kikito. A minha premiação maior vai ser levar todo mundo pra lá. Tanto elenco quanto equipe, porque são pessoas que nunca estiveram nesses espaços. Vai ser revolucionário demais. Esse ato que a gente está fazendo é histórico, principalmente pro Morro da Cruz. Posso garantir que é o primeiro filme gravado na periferia de Porto Alegre, e ainda está na categoria nacional de curtas.