Carla Santos da Silva, 44, foi uma das vítimas das enchentes em Porto Alegre, em maio de 2024. Quando o bairro Floresta, onde vive, ficou submerso, ela passou quatro dias trancada em casa. “As águas do Guaíba alcançaram 1,30m no térreo e cerca de 1,70m na rua. Faltava luz e água no prédio. Só consegui sair com ajuda dos bombeiros”, relata.
Foram mais de 20 dias de angústia até conseguir voltar. Na primeira semana, ficou na casa de uma amiga na Zona Norte; depois, mudou-se para o apartamento de outra amiga, na Cidade Baixa. Durante esse período, deixou de trabalhar. “Vivo da prostituição, e isso eu não podia fazer”, comenta.
Quando soube que o Abrigo Renascer estava acolhendo a população LGBTQIA+, não hesitou em buscar ajuda. “Fui até lá preencher o cadastro dos auxílios emergenciais e pegar cestas básicas e roupas. Saí de casa só com a roupa do corpo e meus documentos”, conta.
O vereador Dani Morethson (PSDB-RS), de Porto Alegre, foi um dos responsáveis pela organização do abrigo. Segundo ele, cerca de 80 pessoas passaram pelo local, muitas vindas de abrigos onde sofreram discriminação. “Recebemos relatos de hostilidade e recusa do uso do nome social. Algumas pessoas nem sequer conseguiram entrar em certos abrigos”, afirma.
No outro extremo do país, em 2022, a cientista social Samantha Vallentine prestou apoio a pessoas LGBTQIA+ nas enchentes que atingiram o Recife. Quando o rio Capibaribe transbordou, a casa dela virou um ponto de distribuição de doações.
A mobilização de Vallentine foi fundamental para estruturar uma rede de assistência emergencial na região da Várzea, onde vive. Ao organizar reuniões e coordenar a entrega de cestas básicas, colchões e materiais de higiene, tornou-se referência na comunidade. Hoje, é presidenta da Natrape (Nova Associação de Pessoas Trans e Travestis de Pernambuco).
Durante a crise, ela e outras travestis colocaram recursos próprios e trabalho à disposição da população, independentemente da identidade de gênero ou orientação sexual. “Montamos uma cozinha solidária para servir café, almoço e janta. Várias travestis desceram para organizar as entregas. Nós, que sempre fomos marginalizadas e negadas de direitos básicos, ajudamos toda a população.”

Rotas periféricas
O estudante Nicolas Melo, 16, mora na Terra Firme, em Belém, e vive cotidianamente a precariedade da periferia. “As ruas alagam, não são asfaltadas, e a água vira lama, dificultando a passagem”, relata.
O transporte público, já precário, torna-se ainda mais caótico e inseguro com as enchentes. “Em dias de chuva, os ônibus lotam e o risco de violência aumenta muito”, pontua.
O multiartista e produtor cultural Dayo Caeu Mescouto, 25, também transmasculino e morador do bairro, compartilha da mesma realidade. Os alagamentos não apenas dificultam os deslocamentos, como também expõem corpos marginalizados como o seu a situações de risco. “A cada chuva, fica mais claro que as populações periféricas pagam um preço muito alto por viverem onde vivem”, desabafa.
Camila Gomide, gestora de Tecnologia, Dados e Produto da Red Dot Foundation Global, aponta que a falta de infraestrutura agrava os riscos de assédio e violência contra a população LGBTQIA+ em contextos de emergência climática.
Segundo levantamento feito pela fundação, 70% das pessoas entrevistadas disseram escolher o transporte com base em limitações financeiras, e a insegurança aumenta em ambientes sem controle, como os ônibus. “87% apontaram o transporte público como um dos principais fatores de insegurança. Em desastres climáticos, com menos opções de locomoção, a vulnerabilidade cresce. Além disso, 44% mencionaram a superlotação como um dos fatores mais preocupantes”, explica Gomide.
Durante eventos extremos, 60% das pessoas já sofreram algum tipo de assédio, e 45% relataram medo de perseguições verbais. Para 20%, a forma de se vestir impacta diretamente a sensação de segurança — evidenciando como a exclusão social também se expressa na vulnerabilidade física.
Gomide afirma que os dados não são casos isolados, mas reflexos de uma negligência sistêmica. “Esses desafios mostram a urgência de políticas públicas inclusivas. A população LGBTQIA+ sofre de forma desproporcional, pois vive em áreas de risco, onde infraestrutura falha e direitos básicos são negados.”
Vida nas margens
A crise climática não afeta a todos da mesma forma. Para quem já vive em vulnerabilidade — como pessoas trans, travestis e outras identidades LGBTQIA+ —, os desastres ambientais ampliam desigualdades e reforçam barreiras ao acesso a direitos.
Vitória Pinheiro, representante do Brasil na COP 26 e primeira pessoa trans a ocupar um posto como ponto focal de juventude da ONU na América Latina, destaca que essas comunidades costumam ser excluídas de abrigos e espaços de acolhimento. “Além disso, há uma enorme lacuna no reconhecimento institucional dessas vulnerabilidades: os dados são subnotificados e invisibilizados no debate climático global”, aponta.
Ela observa que faltam políticas públicas específicas. “Não há programas que considerem o impacto da crise climática sobre pessoas LGBT. Existem ações independentes, como a frente LGBT da COP 30, mas falta um esforço governamental estruturado.”
Essa exclusão aparece também na realidade de Pernambuco. Dados preliminares do Observatório Empregar, da Natrape, mostram que quase 80% da população trans e travesti do estado não acessa programas de assistência social, como o Bolsa Família.
Se já é difícil acessar assistência, a moradia digna está ainda mais distante. Vallentine lembra que, historicamente, pessoas pobres, racializadas e LGBTQIA+ são empurradas para as margens. “Ninguém quer viver à beira de um rio, sujeito a enchentes, ou numa encosta, sujeito a deslizamentos. Mas são os únicos lugares onde conseguimos construir nossas casas”, afirma.
Após as enchentes de 2022, a Natrape tentou articular com a Secretaria de Habitação do Recife uma política específica para a população LGBTQIA+, mas a proposta não avançou.
Enquanto isso, o programa ProMorar, do Ministério das Cidades, prevê R$ 2 bilhões do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para melhorias em infraestrutura em Recife. Vallentine alerta, no entanto, para a ausência de recorte LGBTQIA+ no projeto. “A gente vive o território e conhece o território”, destaca.
Para ela, qualquer projeto de transformação urbana precisa incluir ativamente quem mora nas periferias. Caso contrário, as soluções falham em atender as necessidades reais e acabam reproduzindo a exclusão. “Como diz a pesquisadora Letícia Nascimento, nós somos o outro do outro do outro. Vivemos à margem das margens”, conclui.