Quando se fala da necessidade do fim da escala 6×1 de trabalho, não se trata (principalmente no contexto brasileiro) de uma pauta simplesmente econômica e de classes, mas étnico-racial. Florestan Fernandes, patrono da sociologia crítica brasileira, em seus estudos das relações entre raça e classe, argumenta que a desigualdade racial não deve ser vista separada da luta de classes e, para uma análise concreta da realidade brasileira, é primordial o recorte racial.
O conturbado processo de integração (se é que houve) do negro na sociedade de classes após a abolição impôs uma série de barreiras nas mais diversas esferas da vida social. Dentre essas, destacam-se as relações econômicas, em especial no que tange à empregabilidade dos ex-escravizados. Com todo o processo de incentivo à imigração europeia, em uma clara tentativa de “embranquecimento da população”, restou ao negro poucas ou quase nenhuma oportunidade de adentrar no mercado de trabalho. Tal acontecimento histórico reverbera até os dias de hoje. Não à toa, as piores condições de trabalho afetam principalmente a população negra. Esse processo gerou a exclusão de uma ampla parcela da população brasileira da ordem econômica, social e política vigente. Florestan Fernandes pontua que:
“Em suma, a sociedade brasileira largou o negro ao seu próprio destino, deitando sobre os seus ombros a responsabilidade de se reeducar e de se transformar para corresponder aos novos padrões e ideais de ser humano, criados pelo advento do trabalho livre, do regime republicano e do capitalismo.” (Fernandes, 2008, p. 35)¹
Florestan argumenta que a revolução burguesa tardia no Brasil, devido ao contexto do capitalismo dependente, não realizou as reformas estruturais necessárias para romper com a antiga ordem e garantir algum nível de bem-estar social para os estratos mais baixos (além de um desenvolvimento endógeno das forças produtivas, em uma análise mais econômica), o que ele chamaria de “Revolução Democrática”. No processo de estratificação social à brasileira, o povo negro “liberto” pós-Lei Áurea foi condicionado aos estratos mais baixos da hierarquia social, o que ocasionou o recrutamento para vagas de emprego que apresentavam as piores condições — isso, quando conseguiam ser contratados.
A tão aclamada liberdade de 1888 foi, para além de tudo, a liberdade de morrer de fome, de ser (graças à Lei de Terras) impulsionado para os grandes centros urbanos e, por fim, confinado em áreas periféricas e pouco propícias à habitação. Nesse contexto de uma economia paupérrima, a população, que é em sua maioria negra, se vê limitada a duas alternativas igualmente desoladoras: a de se deixar cooptar pelo crime organizado, morrendo ainda jovem; ou a de tentar adentrar na economia capitalista, que não de hoje a rejeita. Ao escolher a segunda opção, o jovem se vê condicionado a se submeter à escala 6×1, em situações desumanizadoras e degradantes, além da 7×0 na crescente “plataformização” do trabalho, nos aplicativos de entrega, transporte e similares. As péssimas condições de trabalho do povo negro são efeitos diretos dessa falsa democracia racial.
Nesse sentido, o combate ao racismo estrutural passa necessariamente pela luta pela redução da jornada de trabalho. Ao fazermos um recorte racial dos sujeitos que são submetidos a essa escala de trabalho, concluímos que, em sua maioria, são pessoas negras e periféricas. Se os submetidos ao 6×1 têm um rosto, ele com certeza é negro.
O fim da escala 6×1 é um dos passos cruciais para o avanço rumo à segunda abolição de que Florestan falava, em que de fato o negro se integrará à sociedade brasileira, em um processo de emancipação política e, assim, se materialize o que já há muito consta nos anais de nosso projeto de civilização.
*Igor Cordeiro é Secretário de assuntos estudantis do CADR do curso de agronomia da Universidade Federal do Ceará, Mãos Solidárias – CE e militante do Levante Popular da Juventude.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.