Com mais de quatro décadas dedicadas ao estudo da violência e à área da segurança pública, o antropólogo, cientista político e escritor Luiz Eduardo Soares lança Escolha sua distopia (ou pense pelo avesso), editora Edições 70, livro que reúne 13 artigos, ensaios e um depoimento pessoal. A obra articula pesquisa acadêmica, experiência em gestão pública e escrita literária para refletir sobre os caminhos da democracia e os impasses da sociedade brasileira diante do avanço do autoritarismo.
O lançamento acontece nesta sexta-feira (1º), às 18h, no Centro Cultural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). A atividade integra o debate “Segurança cidadã e democracia”, promovido pelo Instituto Novos Paradigmas (INP) e o Democracia e Direitos Fundamentais (DDF). Participam da mesa o ex-ministro da Justiça e ex-governador do RS, Tarso Genro; o mestre em Sociologia e jornalista Marcos Rolim; e a socióloga Bruna Koerich. A mediação será feita pela jornalista e doutora em comunicação Sandra Bitencourt.
Para Tarso Genro, o livro tem “uma importância extraordinária”, pois Luiz Eduardo Soares “não é somente um pensador acadêmico, o que já seria muito, mas é igualmente um quadro extraordinário da gestão pública na área da segurança pública e um elaborador estratégico de projetos de segurança que combinam a segurança de viver em público com a defesa dos direitos fundamentais, individuais e coletivos, da cidadania”.

O ex-governador ressaltou o vínculo entre democracia e política de segurança pública. “Sem um projeto de segurança pública calcado na defesa dos direitos do cidadão, no enfrentamento global com o crime organizado e com o poder das milícias, a democracia se esgota e a república decai.”
Em consonância com essas reflexões, Luiz Eduardo Soares aponta que a transição democrática que culminou na Constituição de 1988 não alcançou as instituições da segurança pública, que permanecem como “enclaves institucionais, refratários à autoridade política civil republicana e à própria Constituição”. Em suas palavras, “as instituições da segurança se tornaram um problema gravíssimo para o Estado democrático de direito”.
Em entrevista ao Brasil de Fato RS, o autor reflete sobre sua trajetória, a ascensão da extrema direita, o papel da segurança pública na democracia e as disputas simbólicas em torno da violência no país.
Brasil de Fato RS: Após mais de quatro décadas pesquisando a violência e atuando na gestão pública, o que o senhor identifica como permanências e transformações no modo como o Estado brasileiro produz e administra a violência? Como essa trajetória influenciou a escrita de Escolha sua distopia?
Luiz Eduardo Soares: No livro, procuro mostrar como a transição democrática, que culminou na promulgação da Carta Magna, em 1988, não alcançou as instituições da segurança pública, o que acabou por transformá-las em enclaves institucionais, refratários à autoridade política civil republicana e à própria Constituição. Como o Ministério Público não tem cumprido seu dever de exercer o controle externo das polícias e parte substancial da população aprova a brutalidade policial, as instituições da segurança se tornaram um problema gravíssimo para o Estado democrático de direito. Não é possível enfrentar a criminalidade nessa situação.

Escolha sua distopia sustenta que a violência de Estado e a cultura punitivista, atravessadas pelo racismo, o patriarcado e a exploração de classe, são entraves centrais à democracia, e que tanto a direita quanto a esquerda, em diferentes momentos, embarcaram nessas caravelas. Como o senhor vê a possibilidade de construção de um projeto democrático popular que enfrente essas estruturas sem reproduzi-las?
Será preciso que as forças democráticas e progressistas assumam uma posição clara e politicamente corajosa, propondo mudanças na arquitetura institucional da segurança pública, na política de drogas e no encarceramento em massa, responsáveis pelo fortalecimento das facções criminosas, dado que o Estado não aplica a Lei de Execuções Penais (LEP), abdicando de controlar o sistema penitenciário. Isso tudo em paralelo a políticas vigorosas de inserção social da juventude.
No livro, o senhor também se debruça sobre os deslocamentos sociais a partir de 2013 e os ruídos na comunicação entre diferentes gerações de ativistas e intelectuais. Que papel o senhor atribui à escuta e à linguagem, inclusive à literatura, na reconstrução de vínculos e sentidos democráticos diante de um imaginário capturado por valores autoritários?
Essa questão é muito importante e delicada. Autoritarismo e dogmatismo existem também no campo progressista. É urgente abrir-se para escutar e aprender com a juventude, até para que nos credenciemos a ser ouvidos também. Um sintoma de nosso fechamento são as acusações frequentes aos novos movimentos como identitários, demonstrando profunda incompreensão das lutas feministas, antirracistas e anti-LGBTfóbicas.

O senhor argumenta que a atual arquitetura institucional da segurança pública, combinada ao encarceramento em massa e à negligência com a juventude, alimenta o poder das facções e mina a democracia. Como podemos construir uma nova cultura política que enfrente esse ciclo de violência estatal e escute as novas gerações, sem reproduzir os mesmos padrões autoritários do passado?
As mudanças necessárias são de tipos diferentes e teriam de ocorrer segundo lógicas distintas e em ritmos diversos. Há aquelas de natureza intersubjetiva e cultural, que envolvem valores, regimes afetivos, processos de identificação e criatividade intelectual e estética. Há aquelas socioeconômicas, e há as mudanças normativas e institucionais. Portanto, estamos falando de saltos de qualidade que não podem ser inteiramente planejados, até porque as micro decisões envolvidas não são previsíveis, nem geram efeitos coerentes e harmônicos.
Por isso, temos de baixar a bola e admitir que não vamos controlar a história. Entretanto, temos de estar prontos e prontas para captar e interpretar os sinais de movimentação nas várias dimensões, sabendo reagir positivamente às eventuais aberturas de possibilidades virtuosas para apoiá-las e fortalecê-las. Precisamos, isto sim, além de humildade e de paciência, de critérios afiados e afinados.
E o critério é: positivo é o que expande a liberdade em perspectiva universalista, reduzindo desigualdades e potencializando oportunidades de emancipação. O critério é, consequentemente, a recusa do punitivismo e da proibição, e a valorização da responsabilização, a partir do respeito radical aos direitos humanos, que devem se ampliar para incorporar crescentemente a natureza.
O Brasil tem hoje a terceira maior população prisional do mundo, com mais de 850 mil pessoas presas. Desde 2000, esse número quase quadruplicou, ao mesmo tempo em que cresceu o déficit de vagas e se agravaram as condições das unidades. Como o senhor analisa a relação entre esse modelo de encarceramento em massa e o fortalecimento de estruturas criminais, como as facções, que o Estado alega combater? Que saídas estruturais são possíveis diante desse cenário?
O encarceramento em massa tem sido o resultado da combinação entre nosso irracional modelo policial, herança perversa da ditadura, e a política de drogas, combinação que se dá no contexto do racismo estrutural e da exploração de classe. A polícia mais numerosa e onipresente no país é a Polícia Militar (PM). Ela é pressionada pela sociedade, pela mídia, pelos mais diferentes atores a produzir e tende a confundir produção com prisão.
Ocorre que ela é proibida pela Constituição de investigar. Se ela é instada a prender mas não pode investigar, o que lhe resta fazer? Prender em flagrante delito. Quais os crimes passíveis de prisão em flagrante? São os mais importantes? São os que envolvem bilhões de reais, interesses poderosos, planejamento e organização? Não.
Qual será então a grande ferramenta para a PM cumprir seu destino encarcerador via flagrante? A lei de drogas, mas não a lei que visa articulações verdadeiramente poderosas, até mesmo transnacionais. E sim a lei de drogas que visa o pequeno varejista do modesto negócio cotidiano das substâncias ilícitas. Resultado: esses pequenos operadores constituem o foco prioritário da polícia mais numerosa e mais atuante. São eles que estão sendo presos em massa. Eles são majoritariamente negros, pobres e jovens. Chegando à unidade penitenciária, eles têm de obter a proteção de quem manda. Como o Estado não cumpre a Lei de Execuções Penais (LEP), não garante a segurança dos presos nem o respeito a seus direitos, caberá às facções criminosas prover a proteção.
O preço cobrado será a lealdade futura, após a saída da prisão. Ou seja, o vínculo, a profissionalização na carreira criminosa. Em outras palavras, o país gasta bilhões para fortalecer as facções e destruir a vida de gerações e de suas famílias. Em nome da segurança e da guerra as drogas. Seria cômico se não fosse trágico.
