Apenas 7% das decisões judiciais envolvendo casos de grilagem – apropriação ilegal de terras públicas – na Amazônia resultaram em condenações, segundo um estudo do Imazon, divulgado nesta quinta-feira (31).
A pesquisa analisou 78 processos criminais com decisões até maio de 2022, somando 526 sentenças e envolvendo 193 réus. Apenas 39 decisões (7%) resultaram em condenações, enquanto os desfechos mais comuns foram absolvição, em 185 casos (35%), e prescrição, em 172 (33%). As condenações atingiram apenas 24 dos 193 réus, o equivalente a 12%.
A pesquisadora Brenda Brito, que participou do estudo, aponta que os dados evidenciam a grande dificuldade em responsabilizar criminalmente os envolvidos em casos de grilagem de terra. “A consequência é o estímulo que isso pode causar para a continuidade desses crimes”, diz.
“A impunidade ou a percepção de que há pouco risco de ser processado e punido estimula a ocupação ilegal de terras públicas na Amazônia. Quando os responsáveis percebem que a chance de responsabilização é mínima, o ciclo da grilagem se perpetua”, diz. O processo inclui o desmatamento para demonstrar posse e a expectativa de, posteriormente, se tornar proprietário da área e lucrar com a área.
O estudo também mostrou que quase metade dos processos (42%) não informava o tamanho da área possivelmente grilada. Mas em 18% dos casos, os territórios envolvidos ultrapassam 10 mil hectares, o que corresponde a 10 mil campos de futebol ou mais de 60 vezes o tamanho do Parque Ibirapuera, em São Paulo. Já em 8% dos processos, as áreas eram superiores a 50 mil hectares, equivalentes ao território de Porto Alegre, a 19ª maior capital do país.
Absolvição
Brito afirma que os casos de absolvição podem ser divididos em três grupos. O primeiro diz respeito à falta de provas suficientes para comprovar o crime. “Por exemplo, em ações envolvendo falsificação de documentos, não havia perícia que confirmasse a falsidade, o que levou o juiz a concluir que não havia elementos para condenação”, explica.
O segundo grupo abrange situações em que os réus foram considerados de boa-fé. Em casos de invasão de terra pública, por exemplo, alguns réus alegaram ter adquirido o imóvel de terceiros sem saber que se tratava de área pública. Contratos de compra e venda sem menção à natureza da terra foram aceitos pela Justiça como indício de boa-fé, afastando o dolo e, com isso, a configuração do crime.
O terceiro grupo de absolvições, segundo Brenda Brito, envolve decisões com interpretações consideradas confusas sobre a própria dinâmica da grilagem de terras na região. Em alguns casos, por exemplo, os réus respondiam por estelionato ao vender áreas públicas, sob a acusação de obter vantagem ilícita.
No entanto, houve decisões em que os juízes entenderam que não havia crime a partir do argumento de que, por a terra pertencer ao Estado, o réu não poderia obter vantagem econômica sobre algo que não lhe pertencia. “São interpretações questionáveis, mas que acabaram levando à absolvição”, afirma a pesquisadora.
Dos 78 processos analisados relacionados à grilagem de terras, 30% envolviam Projetos de Assentamento e 26% tratavam de Glebas Públicas, áreas pertencentes à União ocupadas de forma irregular por particulares. Mas, entre os casos que resultaram em condenações, a maioria (64%) estava ligada a unidades de conservação.
O estudo identificou que as condenações ocorreram sob provas materiais concretas que confirmaram o crime e enfraqueceram as alegações de boa-fé, como notificações prévias de órgãos fundiários, que informavam aos ocupantes que a área era pública e exigiam sua desocupação. Também foram identificados documentos com informações falsas apresentadas aos órgãos fundiários, configurando falsidade ideológica. Nesses casos, os réus não puderam alegar desconhecimento ou boa-fé, o que fortaleceu a atuação do Ministério Público e levou à condenação.
Morosidade
Além da baixa taxa de condenações, a pesquisa apontou que a morosidade no julgamento também compromete a efetividade da resposta judicial nos casos de grilagem. O tempo médio entre o início da ação e a sentença final foi de seis anos, mas em 35% dos processos esse período variou entre seis e nove anos, e em 17% chegou a durar de 13 a 18 anos. Essa lentidão favorece a prescrição, que impede a análise do mérito das condutas pelos juízes e se tornou um dos desfechos mais frequentes.
A maioria das ações tramitou em varas federais do Pará (60%), seguidas por Amazonas (15%) e Tocantins (8%). Os casos foram selecionados com base em levantamentos da sociedade civil e em dados do Ministério Público Federal (MPF) e do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1).
Fortalecimento e prevenção
Brito afirma que o prognóstico para esse cenário não depende apenas do Poder Judiciário, mas também do Executivo e Legislativo na proposição de leis para aumentar as penas para os crimes envolvendo grilagem de terras. “Para crimes como a invasão de terra pública, a gente precisa ter um aumento de pena. Também é necessário observar se os novos projetos de lei que estão propondo novos tipos penais estão trazendo penas baixas, porque se trouxerem também não vai adiantar”, diz a pesquisadora.
O levantamento reforça também a importância de que órgãos no âmbito do governo federal, como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), na emissão de notificações formais aos ocupantes ilegais, exigindo a desocupação de terras públicas.
Como demonstrou o estudo, tais notificações têm se mostrado fundamentais como provas nos processos judiciais, fortalecendo a responsabilização dos envolvidos. “A gente observou que isso foi o que levou à condenação nos casos que a gente viu de invasão de terra pública, que foram efetivamente punidos ou efetivamente condenados”, diz Brito.
“Havia ali uma ação do Incra e do Ministério de Desenvolvimento Agrário que notificaram esses invasores dizendo que aquela terra era pública e que eles precisavam sair da área. E foi isso que fez com que o juiz entendesse que não houve boa-fé.”
“Hoje em dia, com o uso de sistemas como Cadastro Ambiental Rural (CAR) e com imagens de satélite, seria possível fazer um diagnóstico de quais ocupações em terra pública são consideradas ilegais e notificá-las por meio do próprio Cadastro Ambiental Rural. Essas provas poderiam então ser usadas pelo Ministério Público para ingressar com as fontes criminais”, explica.
No âmbito do Judiciário, a pesquisa propõe às escolas de magistratura o aprofundamento de temas ligados ao direito fundiário e à grilagem de terras. “Esse é um tema que, em geral não é debatido em muitas das faculdades de direito pelo país. Então é importante ter capacitações e treinamentos para trazer essa realidade.”
Por fim, recomenda-se que o Ministério Público detalhe nas petições a conduta específica de cada réu e as provas relacionadas, especialmente em ações com múltiplos acusados. De acordo com Brito, a falta de clareza tem prejudicado a avaliação das provas, o que compromete o julgamento.