Na contramão da crueldade ainda praticada em muitos países, o Brasil acaba sancionar a lei que proíbe definitivamente os testes de cosméticos em animais — e vai além: também veta a comercialização de produtos testados em outras partes do mundo. Trata-se de um divisor de águas na proteção animal, na regulamentação da indústria e no avanço da ciência ética no país.
Essa vitória não nasceu pronta. É resultado de mais de uma década de mobilização, articulação e construção técnica. O projeto foi apresentado em 2013, mas seu texto original, apesar de bem-intencionado, era praticamente inócuo — simbólico, com lacunas jurídicas e técnicas. O avanço real veio no Senado Federal, onde o processo legislativo foi reaberto e reformulado com base no diálogo entre sociedade civil, especialistas e a própria indústria de cosméticos. Foram oito anos de trabalho árduo em Brasília para transformar a proposta em um instrumento eficaz.
A mudança foi possível graças à construção de um acordo com a Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (ABIHPEC), resultando em um substitutivo robusto: a proibição vale para todos os testes em animais com fins cosméticos, e também para a venda de produtos testados em qualquer lugar do mundo. A articulação envolveu parlamentares de diferentes espectros políticos, como os senadores Randolfe Rodrigues, Alessandro Vieira, Eliziane Gama e, na época, Gleisi Hoffmann, com apoio institucional do Setorial de Direitos Animais do PT, representado por Vanessa Negrini, atual diretora do Departamento de Proteção e Defesa Animal do Governo Federal.
A força dessa conquista não veio só dos bastidores legislativos. A sociedade também teve papel central. Organizações como a Humane World for Animals, Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, Mercy For Animals, Proteção Animal Mundial e Alianima realizaram mobilizações públicas.
Há mais de cinco anos, a plataforma Change.org Brasil hospeda uma petição que pede o fim dos testes. Hoje, já são mais de 1,6 milhão de assinaturas — uma das maiores mobilizações digitais da causa animal no país. Além disso, a organização realizou campanhas digitais com grande repercussão e apoio de artistas, como Xuxa e Maitê Proença, levando ainda o abaixo-assinado para parlamentares e ao presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos – PB).
Segundo pesquisa do Datafolha, oito em cada dez brasileiros apoiam a proibição da venda de cosméticos testados em animais.
Assim, acreditamos que os parlamentares ouviram a voz do povo, que clamava pelo fim desta crueldade contra os animais. Essa convergência entre ciência, ética e opinião pública foi essencial e aproxima o Brasil dos países que estão na vanguarda da proteção animal.
Na prática, os testes cosméticos com animais já estavam em desuso no Brasil. Grandes empresas como Natura e O Boticário abandonaram a prática há mais de uma década. As pequenas e médias empresas tampouco utilizam animais, e por um motivo simples: testar em animais é caro, e essas empresas utilizam bancos de dados de segurança de substâncias já conhecidas, o que dispensa novos testes. Hoje, é possível utilizar modelos de pele humana cultivados em laboratório e bancos internacionais de dados de segurança, que garantem mais confiabilidade e precisão científica.
A novidade, é que com a nova lei se resolve uma importante lacuna regulatória. Até agora, treze estados brasileiros tinham legislações próprias, criando um mosaico jurídico instável. A norma federal unifica e harmoniza o marco legal, garantindo segurança jurídica à indústria e transparência ao consumidor.
Ao proibir testes e vendas, o Brasil afirma que não há mais espaço para práticas cruéis e ultrapassadas. Reafirma-se o compromisso com o progresso científico, mas também com o respeito à vida — humana e não humana. A decisão é também um reflexo de um novo paradigma civilizatório: consumidores mais conscientes, ciência mais ética e governos mais atentos à voz popular.
A sanção presidencial representa não apenas o fim oficial dos testes cosméticos em animais, mas a consagração de um modelo de política pública baseado em escuta social, rigor técnico e valores éticos. Que este seja apenas o início de uma nova era legislativa no Brasil — onde progresso e compaixão caminhem lado a lado.
*Antoniana Ottoni é especialista sênior de Relações Governamentais da Humane World for Animals.
**Monica Souza é diretora executiva da Change.org Brasil.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil de Fato.