O Ibram (Instituto Brasileiro de Mineração), representante das principais empresas do setor, move uma ação na Justiça Federal para limitar a atuação do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) em normas de saúde e segurança sobre barragens de minérios.
A iniciativa preocupa especialistas e lideranças de movimentos sociais ouvidos pela Repórter Brasil. Caso seja acatado, dizem as fontes, o pedido da entidade pode enfraquecer mecanismos de controle criados após o rompimento da barragem da Vale, em janeiro de 2019, no município de Brumadinho (MG). Considerada o maior acidente de trabalho da história do país, a tragédia deixou 272 mortos, dos quais 250 eram funcionários diretos ou indiretos da mineradora.
O Ibram alega que uma norma regulamentadora publicada pelo Ministério do Trabalho de 2024 estaria interferindo em uma resolução da ANM (Agência Nacional de Mineração), órgão regulatório da atividade no país. “A ação visa que seja reconhecida a competência expressa exclusiva da ANM para definir conceitos técnicos do setor”, diz o Ibram, em nota encaminhada à Repórter Brasil. Leia aqui o posicionamento na íntegra.
Uma das principais frentes de disputa é a definição sobre as chamadas ZAS (Zonas de Autossalvamento), áreas de risco localizadas abaixo das barragens onde não há tempo hábil para resgate em caso de emergências, como o rompimento dessas estruturas. Nesses locais, a própria população deve ser orientada sobre como proceder, seguindo rotas de fuga e pontos de encontro devidamente sinalizados.
O Ibram argumenta que o MTE estaria restringindo as atividades das mineradoras nas zonas de autossalvamento. Por questões de segurança, a portaria do ministério impede atividades de extração, beneficiamento de minérios nesses locais, e autoriza apenas a operação e a manutenção das barragens.
Na ação, o Ibram pede uma liminar (decisão provisória) para que o MTE não seja autorizado a interditar empreendimentos que, na opinião do instituto, estariam em conformidade com a resolução da ANM. A entidade solicita também que o processo corra em sigilo.
A ação do Ibram é criticada por Marta de Freitas, engenheira de segurança do trabalho e integrante da coordenação nacional do MAM (Movimento Pela Soberania Popular na Mineração). “É um desrespeito dizerem que o Ministério do Trabalho não tem competência para normatizar sobre segurança do trabalhador”, afirma.
Daniel Faria de Galvão, doutor em direito e professor da Universidade Federal do Acre (UFAC), explica que a ANM e o MTE são órgãos com atribuições independentes. “A alegação do Ibram não tem qualquer cabimento justamente porque o Ministério do Trabalho é o órgão competente para editar normas referentes à segurança e saúde no ambiente de trabalho”, diz.

No dia 30 de junho, a juíza Ivani Silva da Luz, da 6ª Vara Federal do Distrito Federal, negou o pedido de liminar apresentado pelo Ibram. O processo, no entanto, segue em tramitação para a decisão de mérito.
Em sua decisão, a magistrada argumenta que não existe hierarquia nem subordinação entre as normas da agência e as do ministério, já que ambos têm competências específicas. O texto diz que a fiscalização do MTE “não restringe a atividade de mineração, tampouco paralisa empreendimentos mineradores, apenas averigua a compatibilidade do planejamento e do desenvolvimento da atividade minerária com a exigência de garantia da vida, da saúde e da segurança dos trabalhadores, nos estritos termos da lei”.
A juíza sustenta ainda que a iniciativa do Ibram pode gerar “grande risco de dano reverso”, pois afirma ser fundamental a existência de restrições à permanência de trabalhadores em ZAS, ao citar o caso de Brumadinho.
A AGU (Advocacia Geral da União), que representa o governo federal no processo, afirma que o MTE “agiu dentro de suas atribuições” e que não houve “excesso” da pasta. O MPF (Ministério Público Federal) também questiona a ação da entidade representativa das mineradoras.
Na nota encaminhada à Repórter Brasil, a assessoria de imprensa do Ibram afirma que as medidas regulatórias já implementadas pela ANM “elevaram os padrões nacionais e posicionaram o Brasil como referência internacional em segurança de barragens de mineração”.
Ainda segundo o posicionamento, o Ibram afirma que tem por objetivo “garantir segurança jurídica ao setor mineral, evitando que uma interpretação equivocada do MTE cause danos irreversíveis à economia, empregos e arrecadação pública”.
O que diz a portaria do MTE e o que quer exatamente o Ibram
Após o desastre de Brumadinho (MG), a Lei 14.066/2020 modificou a Política Nacional de Segurança de Barragens e passou a proibir a implantação de barragens de mineração em ZAS habitadas por comunidades locais.
A lei admite nas ZAS “a permanência de trabalhadores estritamente necessários ao desempenho das atividades de operação e manutenção da barragem ou de estruturas e equipamentos a ela associados”.
A norma regulamentadora do MTE tem redação semelhante à da lei. O texto proíbe categoricamente a permanência de pessoas na ZAS, “em situação de grave e iminente risco para a segurança e saúde dos trabalhadores”.
É justamente a expressão “estruturas e equipamentos associados”, contida na lei, que vem sendo alvo de questionamento do Ibram na Justiça. O instituto argumenta que a Resolução nº 95/2022 da ANM permite que nas Zonas de Autossalvamento ou próximo delas também existam áreas de lavra (extração), beneficiamento e disposição de rejeitos dos minérios.

Daniel Galvão, da UFAC, classifica de “ardilosa” a tentativa do Ibram de atrelar as atividades de lavra e beneficiamento de minérios à operação de barragem. “Todos os profissionais, inclusive advogados, que tratam da questão da mineração sabem muito bem que não existe essa relação direta”, argumenta.
Na avaliação de Daniela Campolina, coordenadora do Observatório de Barragens de Mineração, ligado à Universidade Federal de Minas Gerais, falta transparência sobre as atuais condições das barragens no Brasil. Ela explica que as próprias mineradoras têm a responsabilidade de prestar informações à ANM tanto sobre as ZAS quanto sobre os chamados “níveis de emergência”, os diferentes graus de risco à segurança.
Ela usa como exemplo a tragédia de Brumadinho. “A barragem da Vale, em 2019, não estava em nível de emergência acionado e matou 250 funcionários. Se a Vale tivesse cumprido a legislação brasileira, ela teria acionado o nível de emergência e teria tido tempo de evacuar as pessoas”, diz.
O nível de emergência vai de uma escala de 1 (risco alto) a 3 (rompimento inevitável). Quando se chega ao nível 2 (problema detectado ainda não controlado), é necessária a evacuação preventiva das pessoas que estejam na zona de autossalvamento.
Foi o que aconteceu no último dia 29 de julho, quando seis famílias foram retiradas por causa do aumento do nível de 1 para 2 de uma barragem da Emicon Mineração. A estrutura também está localizada em Brumadinho (MG), mas não tem relação com a da Vale. A ANM afirma que por ora não há risco de rompimento.
Brasil tem 98 barragens de mineração em situação de alerta ou de emergência
Segundo boletim de junho da ANM, há 914 barragens de mineração em operação no país, das quais 468 estão enquadradas na Política Nacional de Segurança de Barragens. Dessas, 98 estão em situação de alerta ou emergência.
Além do nível de emergência, há também as categorias de risco, criadas para estimar a probabilidade de acidentes, como o rompimento. A métrica leva em consideração características técnicas e estado de conservação das barragens, além da existência ou não de planos específicos de segurança.
Ainda de acordo com a ANM, 306 barragens estão em nível “baixo” de risco; 86 aparecem no nível “médio” e 76 no nível “alto”. Dentre as de alto risco, 13 são da Vale.
Outro problema é o déficit de fiscalização. Reportagem da Folha de S. Paulo revelou que a ANM fez vistorias em apenas 180 estruturas de barragens de mineração em 2024.

Dados da agência Fiquem Sabendo revelam que, em 2023, a ANM tinha menos servidores do que há 20 anos. “A Agência Nacional de Mineração não tem dado conta nem de fiscalizar as barragens que estão em nível de emergência, que seriam as prioritárias a serem fiscalizadas”, afirma Daniela Campolina. “Além da precarização, a ANM tem um número muito reduzido de funcionários. É uma sobrecarga muito grande, o que faz com que essa contestação do Ibram seja inviável na prática”, acrescenta.
Para os entrevistados, é necessário um diálogo entre os órgãos para garantir que a atividade seja realizada com menos riscos. “Se a mineradora cumprisse todas as regras definidas na legislação, isso diminuiria a possibilidade de afetar trabalhadores. Mas nós temos um histórico de que isso não acontece porque, quando ocorreu na Samarco, em 2015 [no município de Mariana (MG)], veio um discurso de ‘agora nós aprendemos’. Aprenderam e mataram 272 pessoas depois”, afirma Daniela Campolina.
“Entendo que Ibram e Ministério do Trabalho devem dialogar para chegar em um consenso. Mas essa discussão deve considerar que a vida dos trabalhadores não pode ser negociada em troca de suposta inviabilidade econômica”, completa. “Os rompimentos no Brasil já nos mostraram que os trabalhadores na mineração estão expostos à risco de morte e a economia também é impactada negativamente com desastres causados pela mineração”.
A Repórter Brasil procurou a assessoria da ANM, mas não teve retorno até a publicação.