A matriarca que convertia desafios em oportunidades e acolhia a todos em sua casa na vila Cruzeiro, em Porto Alegre, agora tem seu legado imortalizado. Falecida em 2018, a ialorixá Mãe Maria da Oxum, uma das figuras mais importantes do Candomblé no Rio Grande do Sul, foi homenageada no último sábado (2) com a inauguração do Ponto de Cultura Museu Matriz Africana que leva seu nome.
O espaço, nascido do esforço de seus filhos, preserva não apenas objetos sagrados, mas a memória viva de seu trabalho social e de sua luta por respeito. O estabelecimento está localizado na avenida Dr. Carlos Barbosa, no bairro Medianeira.
“Minha mãe é uma das maiores matriarcas do Candomblé do estado do Rio Grande do Sul. Ela pediu para encerrar quando faleceu, mas nós resolvemos abrir esse espaço para guardar o acervo dela. Estamos batalhando há muito tempo por um local, conseguimos um edital da Secretaria de Cultura, e agora realizamos a inauguração”, contou a filha carnal da ialorixá, Cléia Maria Santos da Silva, 63 anos.

Herança de uma líder
Reconhecida por seu trabalho social e seu compromisso com a comunidade, a casa de Mãe Maria era um local onde as pessoas sempre encontravam alimento e apoio. Ela teve mais de 100 filhos de religião e quatro filhos biológicos, dois já falecidos. Cléia Maria Santos da Silva descreve a mãe como uma pessoa vitoriosa e guerreira. Essa força, segundo ela, vinha também de sua identidade espiritual.
“Olha, uma pessoa filha de Oxum com Ogum é assim: vitoriosa, guerreira, tem um espírito muito batalhador. Some a isso ser de virgem, uma pessoa teimosa. São pessoas que não desistem nunca”, explica, concluindo que foi assim que sua mãe sempre transformou desafios em oportunidades (“do limão, ela fazia uma limonada”). “Sua maior herança é o próprio museu e o trabalho que continua através dele.”

O museu conta com um acervo que inclui paramentos de Oxum, livros, recortes de jornais e troféus. Fotografias expostas documentam momentos importantes, como a participação de Mãe Maria no primeiro casamento de Candomblé, além de diversos prêmios culturais que ela recebeu.
Um museu para educar e resistir
Além de preservar objetos e registros históricos, o museu terá caráter educativo e comunitário. “Esse museu vai servir para estudo, para visita de estudantes, para palestras. Vamos abrir para quem quiser fazer evento aqui, para conhecimento”, explicou a filha. Atualmente, o espaço funciona em um imóvel alugado, com planos para se tornar uma sede fixa.

A iniciativa também reafirma o enfrentamento à intolerância religiosa. “Intolerância é não aceitar o próximo. A minha mãe ganhava rancho até de padres. Hoje, infelizmente, temos casas de religião sendo incendiadas. É tudo uma questão de educação e respeito”, disse Silva.
O uruguaio Álvaro Andrés Turalhas Vieira, filho de santo, complementa com a estratégia de resistência aprendida com Mãe Maria: “A gente combate a intolerância não combatendo eles mesmos. É a melhor maneira, não se fazer de surdo, mas também não entrar no confronto, porque é isso que eles querem. A religião de matriz africana não é de combate, é um somatório de coisas.”
De acordo com o Censo Demográfico 2022, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Rio Grande do Sul é o estado brasileiro com a maior proporção de praticantes de Umbanda e Candomblé, com 3,2% da população gaúcha seguindo alguma religião de matriz africana, enquanto a média nacional é de 1%.

“Mãe, pai e amparo social para muita gente”
Maria Albertina Santos da Silva, 65 anos, filha mais velha de Mãe Maria de Oxum, descreve que sua mãe foi uma figura que se destacou por ser mãe, pai e amparo social para muitas pessoas. Com emoção, ela lembra da trajetória da mãe, falecida aos 84 anos. “Ela sempre nos deu muito orgulho, mesmo sem saber ler nem escrever. A grandiosidade dela era imensa, pela inteligência, pela sensibilidade, pelo lado humano de enxergar o outro”, afirma.
Sua jornada começou de forma humilde, como recorda a filha. “Ela começou em Canoas, com um congalzinho pequenininho. Depois viemos para a Cruzeiro. Mesmo quando moramos numa casa de meia-água, ela atendia até tarde da noite, nunca deixou de prestar seu auxílio.”

Engajada na religião, Mãe Maria também se destacou pelo trabalho social, especialmente com mães solo e crianças em situação de vulnerabilidade. “A gente fazia festas, fazia sopa para as crianças aos sábados. Íamos atrás de doações. Muitas vezes ela tirava do bolso dela para poder fazer”, conta a filha.
Para Maria Albertina, a dedicação da mãe à comunidade está ligada à sua própria história de vida: “A mãe sabia o que era passar trabalho com filhos pequenos. Ela foi mãe e pai ao mesmo tempo. Isso fez com que ela tivesse um olhar muito sensível sobre a realidade das outras mulheres.”
Viviane da Silva Ferreira, 44 anos, neta carnal mais velha, também rememora a força da avó: “Minha avó é uma mulher guerreira. Ela ficou viúva aos 34 anos e criou quatro filhos sozinha. O ensinamento dela foi ajudar o próximo”.
Fé sem fronteiras: o legado no Cone Sul
O legado de Mãe Maria ultrapassou fronteiras, o que lhe rendeu o título de “Mãe Maria de Cone Sul”, como lembra sua filha Cléia Maria Santos da Silva. Sua comunidade religiosa é um exemplo de diversidade, acolhendo pessoas de diferentes origens que construíram suas vidas no Brasil. É o caso do uruguaio Álvaro Andrés Turalhas Vieira, que mora em Porto Alegre há décadas e é filho de santo de Mãe Maria desde os anos 1980. “Eu não sabia nada de religião e fui levado pela minha ex-mulher. Tremi todo quando entrei. Ela me acolheu, me ensinou. Eu era o braço político dela, cuidava da parte burocrática: papelada, leis, reuniões. Era um trabalho fundamental para garantir os direitos da comunidade que ela gerenciava”, contou Vieira.
Da mesma forma, a argentina Maria Alejandra, filha de santo por mais de 20 anos, ressaltou a sabedoria da ialorixá e é a prova viva da expansão desse axé. “Hoje eu tenho casa de Candomblé, no Morro Santana”, conta ela, que se tornou uma das novas lideranças formadas por Mãe Maria. “Esse espaço é um reconhecimento pelos trabalhos que ela fez. Ela deixou muito aprendizado.”

A herdeira gaúcha do axé do Gantois
Ativista do Movimento Negro Unificado, Dilmaír Monte relembrou sua trajetória ao lado da ialorixá. “Eu fui filho de santo da Mãe Maria de Oxum. Na década de 1990, quando eu estava na coordenação da Igualdade Racial, atuamos juntos em ações sociais, desde encaminhamentos ao posto de saúde até pedidos de cesta básica.”
Ele reforçou o papel da ialorixá como liderança ancestral, e o espaço é um memorial simbólico que resgata a história e o legado dela, sendo também um ato político de resistência.
“O Candomblé veio com ela”
O babalorixá Thiago Fomotim de Xangô, irmão de santo de Mãe Maria, destacou a relevância cultural do espaço. “Esse espaço mostra o que é o Candomblé dentro do Brasil e do Rio Grande do Sul. Cultuamos os orixás, temos as nossas nações, assim como o Batuque. O que muda são os dogmas.”
Ele refletiu sobre o papel acolhedor das religiões de matriz africana, que funcionam como um porto seguro para muitos. “Essas religiões servem para formar famílias não consanguíneas, mas sociais. Muitos chegam buscando acolhimento psicológico, outros vêm pela fé, pela fome, ou porque sofreram preconceito em outros espaços. E Mãe Maria fazia esse acolhimento muito bem.”