Em um mundo onde as estruturas sociais são moldadas por relações de poder e privilégios históricos, aqueles que ousam desafiar a ordem estabelecida frequentemente se tornam alvos de preconceito e exclusão. No contexto rural brasileiro, os agricultores sem terra representam um dos grupos mais vulneráveis e incompreendidos, cuja luta por um direito fundamental – o acesso à terra – é muitas vezes distorcida, criminalizada e julgada sob o prisma de um moralismo que ignora as raízes profundas da desigualdade agrária.
A história do campo brasileiro carrega marcas de concentração fundiária, latifúndios improdutivos e desigualdade de oportunidades. A ausência de políticas agrárias efetivas criou um cenário no qual famílias inteiras, privadas do direito à terra, são obrigadas a lutar por um espaço onde possam produzir alimentos e sustentar a vida com dignidade. Contudo, ao reivindicarem esse direito, essas famílias são, frequentemente, estigmatizadas como “invasoras” ou “perturbadoras da ordem”, em um discurso que simplifica e marginaliza sua realidade.
Esse preconceito revela muito mais sobre os valores de uma sociedade do que sobre aqueles que são alvo dele. Há uma tendência histórica de julgar com dureza aqueles que estão nas margens, especialmente quando esses desafiam a lógica de concentração de poder. Os agricultores sem terra são vistos como ameaça não porque desrespeitam a ordem, mas porque questionam uma estrutura desigual que beneficia poucos e condena muitos à miséria. O ato de reivindicar justiça social é transformado em “delito” por uma narrativa que prefere a manutenção de privilégios ao enfrentamento das injustiças.
Além da estigmatização social, existe uma desumanização simbólica: o agricultor sem terra é muitas vezes retratado como um ser inferior, incapaz de gerir a terra ou de produzir com eficiência. Essa visão, carregada de preconceitos, ignora a história de luta e de conhecimento que esses trabalhadores carregam, bem como sua contribuição para a soberania alimentar e para a economia rural. Por trás de cada família está uma esperança legítima: plantar, colher e viver com dignidade, em harmonia com a terra que também deveria lhes pertencer por direito.
Outro fator que agrava essa situação é a falta de empatia e compreensão por parte da sociedade urbana, que pouco conhece as realidades do campo. Assim como comunidades fechadas podem se tornar cruéis e intolerantes com aqueles que “fogem da regra”, a sociedade mais ampla tende a julgar os agricultores sem terra com base em estereótipos, sem ouvir suas histórias nem compreender os motivos de sua luta. A criminalização desses trabalhadores muitas vezes camufla o fato de que, enquanto eles lutam por um pedaço de terra, grandes extensões permanecem improdutivas ou servem apenas a interesses econômicos concentrados.
Por outro lado, a luta dos agricultores sem terra é também um símbolo de resistência e esperança. Eles nos lembram que dignidade não se conquista apenas pela posse, mas pela coragem de enfrentar sistemas injustos. Cada ocupação, cada acampamento e cada pequena vitória representam um gesto de liberdade contra um sistema que tenta manter as coisas como estão. É a expressão viva do direito humano de produzir, trabalhar a terra, gerar vida e construir futuro.
O preconceito contra esses agricultores não é diferente de outros preconceitos históricos: ele nasce do medo do diferente, do desejo de manter estruturas de poder e da incapacidade de enxergar a humanidade que existe em cada luta. Romper essa barreira exige um olhar profundo, que reconheça o valor do trabalho, a importância da terra como bem comum e a urgência de construir um campo justo, inclusivo e produtivo.
Por isso, mais do que uma causa isolada, a luta dos agricultores sem terra é uma luta coletiva, que nos convoca a repensar o significado de justiça social, distribuição de recursos e valorização da vida. O verdadeiro progresso não está na concentração de riquezas, mas na construção de uma sociedade em que todos tenham oportunidade de viver com dignidade. Desfazer os preconceitos que pesam sobre esses trabalhadores é o primeiro passo para enxergar a terra não como mercadoria, mas como direito fundamental e espaço de vida.
*Afonso Peche Filho é engenheiro agrônomo, doutor em ciências ambientais e pesquisador científico do Instituto Agronômico de Campinas (IAC).
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.