A Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) realizou na manhã desta terça-feira (5) audiência pública para debater o projeto de lei que pode restringir a autonomia da Defensoria Pública do estado. Segundo deputadas e representantes de movimentos populares presentes, não houve diálogo prévio nem com a sociedade civil ou com a categoria acerca do Projeto de Lei Complementar (PLC) 20/2025, apresentado em junho deste ano pela defensora pública-geral de São Paulo, Luciana Jordão da Motta Armiliato de Carvalho.
O projeto prevê a criação do Grupo de Assessoramento de Demandas Estruturais, para definir as diretrizes para ações coletivas (moradia, violência policial) em oposição a interesses individuais. Mas a Mônica Seixas (Psol) destacou que o texto não esclarece de forma explícita a criação do grupo ou a real influência desse grupo sobre os núcleos especializados.
“Será um grupo ao qual os núcleos estarão subordinados? Ou um grupo meramente consultivo? Permanecem dúvidas”, questiona Mônica Seixas.
A composição do grupo incluiria, em parte, pessoas próximas à chefia da Defensoria Pública-Geral, o que tem sido interpretado como uma tentativa de concentrar o poder decisório na direção do órgão e, indiretamente, no governador do estado. Luciana Jordão da Motta Armiliato de Carvalho foi nomeada para o cargo pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) em abril de 2024, para o biênio 2024-2026.
Os movimentos convidaram formalmente a defensora-geral, Luciana de Carvalho, e a ouvidora-geral da Defensoria, Camila Marques, para a audiência pública, mas elas não participaram do encontro.
“Uma coisa que aprendi ao longo do tempo é que os textos legais precisam ser claros, porque, quando não são explícitos, ficam sujeitos a interpretações variadas”, afirma a deputada. “O defensor-geral pode, como já vimos em diversos momentos da história, ser pressionado por decisões políticas. E, se o texto deixa margem para múltiplas interpretações, teremos respostas diferentes conforme a conjuntura política vigente.”
Na mesma linha, a deputada Paula Nunes, da Bancada Feminista do Psol, alerta que o projeto pode restringir a atuação dos núcleos especializados da Defensoria. “É importante destacar que, atualmente, a Defensoria não possui um grupo específico com essa função. Os núcleos especializados desempenham papéis bem definidos”, explica.
A parlamentar ressalta a relevância dos núcleos especializados, que atuam em áreas variadas e exercem funções como a elaboração de pareceres técnicos, o monitoramento de políticas públicas e o diálogo constante com movimentos sociais.
“Núcleos que, em suas respectivas áreas, cumprem o papel de aproximar a Defensoria Pública dos movimentos sociais; que fortalecem a luta coletiva por meio das tutelas coletivas; que produzem pareceres e notas técnicas sobre temas complexos e de difícil entendimento para o público em geral; além de manter um contato cotidiano com organizações sociais”, enfatiza.
Na avaliação de Nunes, fortalecer essas unidades é essencial para ampliar o alcance da Defensoria e deve ser uma prioridade para a Assembleia Legislativa de São Paulo. “Pensar em como fortalecer esses núcleos, em vez de enfraquecê-los, é uma responsabilidade também da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.”
O que dizem os movimentos?
A criação do Grupo de Assessoramento também gera preocupação entre os movimentos populares. Yan Funck, advogado do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), destaca que o texto não especifica claramente quais seriam as funções e os limites desse grupo.
Para Funck, as intervenções em casos de despejo nas comunidades do Moinho, em São Paulo, e do Jaguaribe, em Osasco, evidenciam a importância de manter os núcleos já existentes.
“O projeto de lei deixa a criação desse grupo mal explicada. Não está claro o que exatamente ele seria. Propõe-se uma estrutura cuja atuação carece de limites definidos, abrindo espaço para que, eventualmente, um defensor público-geral transforme esse grupo em um mecanismo que sufoque justamente o trabalho dos núcleos. Assim, ficamos totalmente reféns dessa nova configuração, sem clareza sobre as reais atribuições e restrições desse grupo”, afirma.
Amanda Rodrigues, do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), alerta para o conjunto do projeto de lei, que além da criação do grupo de assessoramento, trata também da valorização salarial dos defensores e da ampliação da carreira.
“A proposta tem como objetivo principal a melhoria dos salários dos defensores públicos e a expansão da carreira, ampliando a atuação da Defensoria nos municípios que ainda não contam com atendimento ou onde ele é insuficiente. No entanto, o projeto traz cláusulas extremamente genéricas, porém muito estratégicas, elaboradas pela defensora-geral”, explica Rodrigues.
“Essa proposta salarial busca angariar o máximo de apoio dos defensores, mas, em contrapartida, concentra o poder da Defensoria na direção do órgão. Os movimentos sociais apoiam o fortalecimento e a ampliação das carreiras, mas isso deveria ser discutido separadamente, e não junto com esse conjunto de medidas de fundo”, conclui.
Nesta linha, Manuela Gatto, do Instituto Pro Bono, defendeu a “completa supressão” de todos os artigos do projeto que tratam do grupo de assessoramento. “Trata-se de um projeto de lei que não demonstra qualquer compromisso com as demandas e pautas da sociedade civil, que são justamente os principais usuários e beneficiários da Defensoria Pública. Além disso, o governo pretende aprová-lo em regime de urgência, sem permitir que esses usuários possam se manifestar”, critica.
Segundo Gatto, devido à sua estrutura e ao número reduzido de profissionais, a Defensoria Pública não consegue atender individualmente todas as pessoas que necessitam de seus serviços. Por isso, ela enfatiza a importância dos núcleos especializados, que atuam na defesa de direitos coletivos e difusos, garantindo, de forma mais ampla, o acesso aos direitos individuais por meio de ações estruturais.
O que propõe o PLC?
Além da criação do Grupo de Assessoramento de Demandas Estruturais, um segundo ponto de preocupação apontado pelos movimentos é o que chamam de “esvaziamento” do Conselho Superior da Defensoria Pública na definição da proposta orçamentária encaminhada para aprovação da Alesp. Atualmente, o Conselho possui poder de veto sobre a proposta apresentada pela Defensora Pública-Geral. Com a nova proposta, o Conselho passaria a ter apenas caráter consultivo, sendo ouvido, mas sem poder decisório.
No mesmo mês em que o projeto foi apresentado à Assembleia Legislativa, foi aprovado o regime de urgência para sua tramitação, solicitado pelos deputados da base governista. Essa medida acelera o processo, reduzindo prazos e, em alguns casos, dispensando etapas como a análise prévia nas comissões.
Outro lado
Em nota, o Conselho Consultivo da Ouvidoria-Geral da Defensoria informou que recebeu a notícia do projeto com “preocupações” e que a medida aponta para uma “centralização das decisões”.
Os membros do Conselho defendem que a criação do Grupo de Assessoramento de Demandas Estruturais “pode colocar em risco a atuação autônoma e contramajoritária desempenhada pelos Núcleos, nos termos previstos na proposta, visto a potencial natureza vinculativa das diretrizes que serão formuladas”.
Também afirmam que as alterações diminuíram “o debate democrático dentro da Defensoria Pública de São Paulo ao alterar o rito de aprovação da proposta orçamentária da Defensoria Pública e modificar o formato das reuniões do Conselho Superior que tem competência para exercer o poder normativo no âmbito da Defensoria Pública do Estado”, diz a nota técnica.
Também em nota enviada ao Brasil de Fato, a Defensoria Pública negou que a proposta enviada à Alesp prejudique o papel do órgão. Leia na íntegra
“A Defensoria Pública do Estado de São Paulo esclarece que o Projeto de Lei 20/2025 não esvazia a autonomia dos Núcleos Especializados. O objetivo central da proposta é aprimorar a atuação institucional por meio da criação do Grupo de Assessoramento em Demandas Estruturais, órgão de caráter consultivo, colaborativo e estratégico, voltado ao apoio em litígios complexos e estruturais, especialmente aqueles que envolvem a criação ou alteração de políticas públicas. Ressaltamos que o grupo não possui função vinculativa, cabendo aos defensores e aos Núcleos a decisão sobre o seguimento das orientações, preservando-se, assim, sua autonomia e discricionariedade.
Não existe uma linha no projeto de lei que coloque os núcleos administrativamente sob o Grupo de Assessoramento. O Grupo de Assessoramento não tem poder de veto de qualquer iniciativa dos núcleos e não está estruturalmente colocado como gestor de núcleos e demandas. Ele, de fato, assessora e dá robustez às iniciativas.
Atualmente, a Defensoria conta com dois momentos de participação popular em seus rumos institucionais: o Momento Aberto – nas sessões do Conselho Superior – e o Ciclo de Conferências. Com a criação do Grupo de Assessoramento em Demandas Estruturais, estamos inovando ao instituir um terceiro espaço de participação, que traz a possibilidade concreta de a sociedade civil construir e opinar diretamente sobre a atividade-fim da Defensoria Pública.
Cabe frisar que não se trata de um órgão voltado à tutela coletiva tradicional, mas sim ao enfrentamento de demandas estruturais, conceitos distintos no âmbito jurídico. Demandas estruturais referem-se a litígios que envolvem a implementação ou alteração de políticas públicas, exigindo soluções mais amplas e dialogadas. Estruturas semelhantes já existem em instituições que também contam com independência funcional de seus membros, como os Tribunais Superiores (STJ e STF) e os Ministérios Públicos.
Por fim, esclarecemos que a proposta de alteração relativa à elaboração da proposta orçamentária anual da Defensoria Pública visa apenas adequar a legislação estadual à Lei Complementar Federal nº 80/1994, que estabelece normas gerais para as Defensorias Públicas em todo o país. Trata-se, portanto, de um ajuste técnico.
A Defensoria Pública do Estado de São Paulo reitera seu compromisso com a transparência, o diálogo institucional e a defesa dos direitos da população vulnerável.”