Faço uma leitura da pertença identitária nacional perante os últimos ataques advindos da Nação-império Americana contra a soberania brasileira a partir de Mark Twain no afã de navegar com segurança sobre o mar significante da palavra “patriota”. Isto é, reporto-me ao autor norte-americano que teceu crítica social e política aos laços patrióticos belicosos reproduzidos por ideologia imperialista, que arrasta, inexoravelmente, nações para a guerra em benefício do sacrossanto capital. Posto que o patriotismo imperante é produto direto do imperialismo que arrasta as massas ao campo de batalha. Ele refuta a utilização do espírito patriota para fazer a guerra imperialista norte-americana ao afirmar: “Eu me recuso a aceitar que a águia crave suas garras em outras terras”.
Na conjuntura imediata, a águia norte-americana cravou suas garras novamente no Brasil e a reação predominante foi, surpreendentemente, a de retomada da chama nacional-popular registrada nos editoriais de jornais tradicionais e nas pesquisas de opinião. A Pátria em perigo – sob ataque de Trump – produziu importante despertar da identidade nacional-popular. Ao que tudo indica, estamos diante de um novo horizonte de luta política progressista baseado no nacional-popular – projeto de Brasil destruído pelo golpe militar de 1964 – que é fundamental retomar para a defesa e o desenvolvimento do país. Não é Donald Trump que deve – como imperador – decretar o que é o melhor para o Brasil, mas os brasileiros identificados com a soberania e independência da nação.

Nada de novo no front, perante o ataque, o patriota bolsonarista postou-se como traidor dos interesses nacionais. O movimento de defesa da soberania nacional não teve a adesão do patriota verde-amarelo, uma vez que ele representa adesão patriótica servil e abstrata com fortes raízes coloniais. Diante das sanções de Donald Trump à soberania brasileira, a postura dos representantes da extrema direita foi de completa alienação identitária-nacional. Ou melhor, o bolsonarismo retratou política impatriota com manifestações públicas de adesão à águia imperialista. É a exibição do patriotismo degenerado, fenômeno impossível de explicar descolado do impacto da dominação colonial e do efeito nocivo de décadas neoliberais de privatização do público e de enfraquecimento das instituições de bem-estar social.
Sujeito neoliberal imagina a liberdade como lógica de mercado
No imperialismo de expressão neoliberal, há forças de coerção e consentimento que operam no interior das nações e impõem políticas, amiudadamente, contrárias aos interesses nacionais. Em verdade, os interesses nacionais dissolveram-se nas últimas décadas. A privataria brasileira de FHC e o bolsonarismo fazem parte de um mesmo movimento, inclusive refletem o mesmo desejo político eleitoral. Em suma, o sujeito neoliberal totalmente submisso à ordem do capital que imagina a liberdade como lógica de mercado e desconfia da política coletiva dos partidos, sindicatos e movimentos sociais compõe a massa de soldados impatriotas do tempo presente.
Mark Twain nos apresenta dois tipos de patriotismo, o de caráter servil que postula a submissão incondicional à Pátria, ou seja, o patriotismo como abstração preso aos símbolos castrenses, monárquicos e imperialistas; e outro republicano, baseado na livre manifestação de pensamento, na soberania popular e, sobretudo, na postura anti-imperialista. É na contextura de ameaça nacional ou de postura imperialista que se manifesta o patriotismo servil contrário ao interesse nacional e, também, o patriotismo anti-imperialista de defesa da soberania da Pátria. O primeiro pode ser sintetizado para nós na expressão “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”, isto é, no alinhamento servil e colonial. Diferentemente da identidade verdadeiramente nacional e republicana que é acionada quando a soberania do país está em jogo por ameaça externa. É uma luta popular em defesa do interesse comum e da independência nacional.

O escritor norte-americano vivenciou a criação das bases belicosas das Nações-império, conjuntura de incremento do militarismo e de preparação à Guerra Total. A contextura era de patriotismo pernicioso, em que o fanatismo nacional ameaçava a civilização moderna. E é essa tipologia patriótica que hoje retorna e ameaça as nações e a paz mundial. Nosso tempo, sem dúvida, é de litígio militar e de guerra por todos os meios. Portanto, é um momento oportuno para ajustar a coesão política interna à defesa nacional, dado que a extrema direita no estágio escatológico – de iminente guerra nuclear e de acidente climático – ameaça objetivamente a existência planetária.
Nação-império arrasta os seres vivos para o fim
Concretamente, diferente da crise cívica vivida por Mark Twain, quando o imperialismo apresentava suas garras de águia, o século XXI marca uma crise civilizacional e planetária profunda, momento no qual a Nação-império arrasta, irresponsavelmente, os seres vivos para o fim. Ele é suicidário e concentra potência de destruição jamais existente na história.
Instrutivamente, em face da contaminação ideológica da palavra, qualifico o esforço de defesa da nação como movimento nacional-popular, deixando aos traidores da soberania brasileira a reputação xenófoba do fervor “patriota”, pois no Brasil o patriotismo, grosso modo, é o refúgio de ódio ao povo, igualmente, do golpismo e da transferência da riqueza nacional à Nação-império. Não há império sem seu outro subalterno, o território colonial sujeitado. Nele emerge um tipo específico de patriota, de consciência colonial e serviçal ao poder norte-americano. É por isso que há uma diferença tênue na gramática política brasileira que dificulta a identificação e o discernimento entre patriotas e traidores.
Em substância, os nossos patriotas de extrema direita imaginam a Pátria como prolongamento do poder da Nação-império, tendo em conta que resistem à construção de uma nação livre, multicultural e popular. Mark Twain afirma que a alma e a substância do patriotismo servil é a covardia moral. De fato, a descarga de violência simbólica e material dos patriotas está centrada nos grupos sociais marginalizados e nos povos miseráveis ou sitiados pelo poder militar das Nações-império. Palavras do autor: “Em qualquer crise cívica grave e perigosa, o rebanho não se preocupa com os erros e acertos da questão, anseia apenas por ficar do lado vencedor”. Nesse sentido, faz parte da lógica do patriotismo servil – tanto o de matriz imperialista como o de inclinação colonial – a covardia moral. Os patriotas do Norte e os do Sul defendem a mesma pauta imoral, visto que são corpos de carne branca produzidos pela mesma matéria-prima social.
Efetivamente, há duas cartografias da nação brasileira, uma que insiste em encontrar novas margens de esperança e outra que impõe traços violentos de retorno à lúgubre paisagem de dominação colonial. Em realidade, o bolsonarismo que ameaça o Estado Democrático de Direito é parte das contradições da modernidade dos trópicos, dessa subserviência colonial à Nação-império posta como política patriota. De forma que o interesse nacional da Pátria Amada não deve colidir com a vontade política do Império Americano.
Declaração de hiperguerra
O tirano do Norte não aplicou sua força imperial porque é angelical e sentimental com o réu Bolsonaro, mas porque a posição do Brasil nos Brics ameaça os interesses americanos na região. Os Estados Unidos, além de proxy war, também fazem patriotismo por procuração. A imagem pública de lideranças de extrema direita fazendo uso ostensivo do boné vermelho “Make America Great Again”, de Trump, ilustra a subjetividade patriótica neoliberal.
A absurda política de taxação às exportações do Brasil e o aparente recuo devem ser interpretados como uma declaração de hiperguerra ao Estado brasileiro, que consiste antes no disparo de ameaças nas redes sociais para provocar o agenciamento da emoção pública ao fenômeno pânico do que combate tradicional com uso de armas convencionais. O retorno à extrema direita bolsonarista ao poder político, objetivamente, recolocará o Brasil sob o campo de domínio norte-americano.
Militarismo e fundamentalismo religioso
O patriota de carne e osso que veste verde-amarelo nas ruas e nas infovias digitais compõe um quadro de subjetividade singular, de importante ruptura com as marchas nacionalistas e anticomunistas do século passado. É rebento de décadas de neoliberalismo no país. Logo, não é o Estado-nação que cativa o afeto dos patriotas raivosos, já que expressam patriotismo de pertencimento ao mercado hegemônico. O Estado mínimo de bem-estar social produziu um sujeito novo, completamente cético acerca da importância de política pública como vetor de transformação da realidade brasileira. Não é tudo. O patriota ainda carrega uma longa tradição com raízes profundas no militarismo e no fundamentalismo religioso. Não há mito político de extrema direita distante do adestramento belicoso da sociedade e do jogo sagrado da fé. Afinal, Bolsonaro e Trump são percebidos como mito porque foram salvos por Deus, após o fracasso do Estado como escudo de proteção aos presidenciáveis.
A forte concentração do rebanho patriota na esfera militar e religiosa, quer dizer, na população de personalidade autoritária, registra um perfil dominante. Mark Twain vivenciou os primeiros passos do horror desse patriotismo pernicioso e resistiu com as armas da crítica para proteger a bandeira norte-americana da desonra, abrindo trilhas de luta e cidadania. Imagino que devemos arrancar a nossa bandeira das mãos dos patriotas traidores para limpá-la da desonra impatriota de traição dos interesses coletivos nacionais.
* Ronaldo Queiroz de Morais é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP).
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.