A mineração de lítio em Itinga e Araçuaí coincide com um aumento preocupante de mortes e doenças respiratórias. Uma análise aprofundada nos dados de saúde revela padrões alarmantes que colocam em questão as promessas de desenvolvimento.
Enquanto as promessas de desenvolvimento se multiplicam, a realidade nas comunidades de Itinga e Araçuaí mostra outra face da corrida pelo lítio.
Há um claro retrocesso nas políticas públicas, marcado pela flexibilização de licenciamentos, e um agravamento preocupante das desigualdades sociais e da saúde. A promessa de um lítio verde para a transição energética global esconde, no Vale do Jequitinhonha, um dia a dia de exploração que transcende a extração mineral, atingindo a vida e a saúde das pessoas.
Como ressalta Aline Veber, doutora em geografia e professora da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), que também integra o coletivo Observatório dos Vales e Semiárido Mineiro. “Fala-se muito sobre o lítio, e esse discurso acaba por ocultar e negar a diversidade dos territórios, povos, modos de vida e experiências — inclusive aquelas que estão para além da base material, que tocam o mundo das tradições e dos sagrados”.
O caso da Sigma Lithium mostra como países ricos buscam limpar sua energia às custas de novas zona de sacrifício no Sul Global. Para Itinga, município que se tornou o principal polo da mineração de lítio em termos de arrecadação de royalties por habitante, a queda de quase 40% em sua receita de Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM) (de R$ 1.050 por habitante em 2023 para R$ 649 por habitante em 2024) demonstra a instabilidade financeira da atividade.
As arrecadações da mineração do lítio em Itinga despencam quase 40%
CFEM per capita (R$)
Métrica Focada na Sigma Lithium | Dados de 2023 | Dados de 2024 | Variação |
Faturamento da Sigma Mineração | R$ 490,4 milhões | R$ 268,6 milhões | -45,2% |
CFEM Gerada pela Sigma | R$ 9,9 milhões | R$ 6,3 milhões | -36,4% |
Receita de Itinga vinda da Sigma (60%) | ~R$ 5,9 milhões | ~R$ 3,8 milhões | -35,6% |
Receita Municipal por Habitante (Total) | R$ 1.050 | R$ 649 | -38,2% |
Fonte: Dados da Agência Nacional de Mineração (ANM)
Números que preocupam
O Vale do Jequitinhonha, com seus 59 municípios e quase 800 mil habitantes, vive uma dura contradição: muita riqueza mineral ao lado de um baixo desenvolvimento humano. Análises detalhadas de dados oficiais, de 2008 a 2024, indicam uma forte ligação entre a exploração do lítio e a piora da saúde pública em Itinga e Araçuaí, as principais cidades produtoras de lítio no Vale.
Para entender melhor essa relação, comparamos Itinga e Araçuaí (as cidades afetadas pela mineração intensa) com Rio Pardo de Minas (uma cidade vizinha, parecida, mas que não teve um boom na exploração da mineração; em termos estatísticos, será nossa cidade de controle). Essa comparação nos ajuda a ver se os problemas de saúde são específicos das áreas de mineração ou se são gerais da região.
Análises detalhadas das taxas de mortalidade (número de óbitos para cada mil habitantes) no período anterior, 2010-2017, e posterior, 2018-2024, a fase de mineração mais intensa, já com os dados isolados do impacto da pandemia de covid-19, revelam um padrão preocupante:
Município | Média Anual de Mortalidade (‰ hab.) 2010-2017 (Pré-Mineração Intensiva) | Média Anual de Mortalidade (‰ hab.) 2018-2024 (Pós-Mineração Intensiva – Isolada) | Variação na Taxa de Mortalidade (‰ hab.) |
Araçuaí | 4,98 | 5,585 | +0,605 |
Itinga | 4,22 | 5,310 | +1,090 |
Rio Pardo de Minas (controle) | 3,56 | 3,345 | -0,215 |
Fonte: Dados do Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS), compilados para este estudo. Populações anuais do IBGE/SIDRA.
Para realizar uma análise mais precisa e isolar o impacto da mineração na mortalidade geral, os dados de óbitos foram ajustados considerando a influência da pandemia de covid-19. Para isso, foi utilizada a base SIVEP-Gripe da Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais (SES-MG), abrangendo o período de janeiro de 2020 a dezembro de 2023. A média anual dos óbitos por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) com diagnóstico de covid-19 foi subtraída dos totais de mortalidade do período pós-mineração intensa (2018-2024). Essa metodologia permite uma visão mais “limpa” das tendências de mortalidade, minimizando o ruído causado pela pandemia.
O que os dados mostram é que, mesmo após isolar as mortes diretas por Covid-19, Itinga e Araçuaí, as cidades com mineração de lítio, tiveram um aumento significativo na taxa de mortalidade. Em Araçuaí, com uma população média de cerca de 36 mil habitantes, isso significa aproximadamente 22 mortes a mais por ano. Em Itinga, com uma população de cerca de 14,6 mil habitantes, isso representa aproximadamente 16 mortes a mais por ano.
Essas mortes adicionais não são causadas pela Covid-19, mas indicam que, proporcionalmente, mais pessoas estão morrendo nessas cidades após a mineração intensa. Já Rio Pardo de Minas, a cidade de controle, registrou uma redução na taxa de mortalidade após isolar o impacto da Covid-19. Com uma população de cerca de 30 mil habitantes, a cidade teve cerca de 7 mortes a menos por ano.
Essa diferença reforça a ideia de que a mineração pode estar contribuindo para o aumento de mortes nas áreas afetadas, enquanto a cidade de controle, sem essa atividade intensa, mostra uma melhora ou estabilidade quando os dados de mortalidade na pandemia são isolados.
Análise das internações por Doenças do Aparelho Respiratório
A análise dos dados de internações por Doenças do Aparelho Respiratório (Capítulo J da CID-10), descontados as mortes em razão da pandemia, mostra um quadro preocupante:
Município | Média Anual de Internações Respiratórias 2010-2017 (Pré-Mineração Intensiva) | Média Anual de Internações Respiratórias 2018-2024 (Pós-Mineração Intensiva) | Variação Percentual |
Araçuaí | 282,88 | 346,14 | +22,36% |
Itinga | 64,50 | 80,00 | +24,03% |
Rio Pardo de Minas (Controle) | 281,75 | 241,57 | -14,26% |
Fonte: Ministério da Saúde – Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS), compilado para este estudo.
Em resumo, Itinga e Araçuaí, as cidades com mineração intensiva de lítio, registraram um aumento significativo nas internações por doenças respiratórias (que não são Covid-19). Em Araçuaí, houve um aumento de +22,36%, enquanto em Itinga, o aumento foi de +24,03%. Em contraste, Rio Pardo de Minas, a cidade de controle sem a mesma intensidade de mineração, observou uma redução de -14,26% nas internações por doenças respiratórias.
Esses números sugerem que a atividade minerária pode estar contribuindo diretamente para o aumento de problemas de saúde respiratória nessas comunidades, independentemente do impacto da pandemia de Covid-19.
Um morador de Poço Dantas, comunidade de Itinga, detalha o que acontece por lá. “São 24 horas por dia com barulho e poeira. Muitas pessoas não conseguem dormir à noite, e temos visto o aumento de doenças respiratórias”.
Promessas de riqueza
A promessa de desenvolvimento por meio da arrecadação da mineração, também precisa ser analisada de perto.
O que os dados mostram é que Itinga, mesmo sendo uma cidade menor, recebeu em 2023 cerca de 5,5 vezes mais royalties de lítio por pessoa do que Araçuaí. No entanto, a arrecadação em Itinga caiu quase 40% de 2023 para 2024, e a previsão para 2025 aponta para uma queda ainda maior, de 81,8%. Isso mostra que o “benefício econômico” dos royalties é muito instável e imprevisível, levantando dúvidas sobre sua capacidade de sustentar o desenvolvimento a longo prazo.
Dados do Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES) revelam que a Sigma Mineração S.A. recebeu um subsídio de R$ 486,7 milhões. A empresa, que se posiciona como líder na extração de lítio no Brasil, é responsável por uma parcela significativa da arrecadação de royalties do mineral no país.
Para Joyce Silva, moradora de Araçuaí, essa dinâmica levanta uma questão fundamental: “Esse desenvolvimento é para quem? Não é um desenvolvimento para que a humanidade prospere. É um desenvolvimento para que o capitalismo continue se apropriando de riquezas e gerando desigualdade”.
Participação na Arrecadação de CFEM de Lítio (Dados Oficiais de 2024)
Empresa Mineradora (2024) | Faturamento Declarado (Base de Cálculo) | Imposto CFEM Arrecadado | Participação (%) na Arrecadação |
Sigma Mineracao S.A. | R$ 537.212.173,00 | R$ 12.580.311,68 | 51,67% |
AMG Brasil S.A. | R$ 448.256.541,14 | R$ 8.996.405,23 | 36,95% |
Companhia Brasileira de Litio | R$ 137.294.396,37 | R$ 2.771.899,70 | 11,38% |
Total | R$ 1.122.763.110,51 | R$ 24.348.616,61 | 100% |
Fonte: Dados oficiais da Agência Nacional de Mineração (ANM) para o ano de 2024.
A tabela mostra que do total arrecadado com CFEM de lítio pelas três maiores empresas, a Sigma é responsável por 51,67% desse valor.
Crise ambiental
O Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (CEMADEN), já em 2023, mostrou que o Vale do Jequitinhonha concentrou 18 das 20 cidades que mais aqueceram no Brasil, tornando-se o centro nacional do calor extremo. Mesmo assim, até hoje, nenhum órgão do governo estadual fez uma ação coordenada para diminuir essa vulnerabilidade.
Esse cenário de crise sócioambiental esteve presente na programação, do 40° Festivale – festival de cultura popular do Vale do Jequitinhonha, em Diamantina, no Alto Jequitinhonha, que foi palco para diversas manifestações artísticas e protestos.
Como em apresentações como o show do artista Edu do Vale, que cantou versos sobre o cerrado. “Um velho senhor esguio, de pele crespa, enrugada, caminha na encruzilhada, tentando fugir da morte. Resiste ao fogo, à seca, ao corte, eita peleja danada, ah! velho Cerrado, dizem que ocê é mato torto, mas não é assim que Deus escreve? Esse torto é consagrado pelo povo estudado, o berço das águas brasileiras”.
A batalha nos tribunais
A Deputada Federal Célia Xakriabá anunciou que entrará com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF) contra as leis que facilitam o licenciamento ambiental no país.
O documento argumenta que essas medidas são claramente inconstitucionais, especialmente os Decretos Federais nº 10.657/2021 e nº 10.965/2022 e as resoluções da Agência Nacional de Mineração (ANM), “que tomam para si uma competência que é exclusiva da União”, alerta a deputada. Para ela, essas leis “arrancaram o coração, a coluna dorsal, que era o que está previsto na Constituição Federal de 1988, o artigo 225, que garantia os processos de consulta livre, prévia e informada”.
Essa ofensiva jurídica é reforçada pela Nota Técnica do Projeto Liquit, um grupo de universidades (UFMG, Unimontes, UFVJM e London South Bank University) que aponta muitas falhas nos estudos ambientais da Sigma. Eles destacam a falta de coleta de dados sobre a qualidade da água e a não realização da consulta prévia às comunidades tradicionais, um direito fundamental garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A tentativa da empresa de censurar a nota gerou repúdio de mais de 25 sociedades científicas.
Ricardo Targino, da Mídia Ninja, convidado a falar sobre a mineração no palco do Festivale, ligou a votação em Brasília à realidade local do Vale do Jequitinhonha. “Quando nós falamos em água, nós estamos falando do recurso natural mais valioso dessa região. Porque água vale mais que diamante, que ouro e que lítio. Vamos defender nossas águas contra aqueles que vêm defender um progresso que nunca dividiu a riqueza entre nós. Só aumentou nossa pobreza. O povo do Vale do Jequitinhonha não vai se render sem lutar”.