Recentemente, um vídeo publicado pelo influenciador Felipe Bressanim Pereira, o Felca, trouxe à tona um tema que, até então, circulava quase restrito aos círculos acadêmicos e aos profissionais de educação, psicologia e assistência social: a chamada “adultização das infâncias”. Em poucas horas, a postagem não apenas viralizou, como também provocou debates nas manchetes da imprensa nacional e em rodas de conversa país afora.

O mérito de Felca foi dar visibilidade, com a força de um conteúdo digital bem articulado, a uma questão tão delicada quanto urgente – que toca, direta ou indiretamente, famílias, escolas, políticas públicas e plataformas digitais.
Mas, antes de tudo, é preciso dizer: um corpo não é apenas um corpo. Ele é, também, o seu entorno. Mais do que músculos, ossos e órgãos, um corpo é vestido, adornado, modificado, narrado e interpretado. É a roupa que o envolve, os acessórios que o distinguem, as marcas e intervenções que nele se operam, os gestos que nele se educam. É imagem, é silêncio, é memória visível. Não são as semelhanças biológicas que definem o corpo, mas os significados sociais e culturais que nele se inscrevem.
Nesse sentido, a professora Jane Felipe, que atuou na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), contribuiu para o debate ao cunhar o conceito de “scripts de gênero”: roteiros sociais que prescrevem condutas, desejos e atributos esperados de homens e mulheres. Esses scripts não são neutros nem universais; são produtos de uma sociedade que se pretende hegemônica e que busca impor padrões. Rompê-los, modificá-los ou escrever novos roteiros pode significar enfrentar sanções e discriminações.
No caso das mulheres, por exemplo, esses scripts frequentemente incluem a erotização de seus corpos como atributo naturalizado, reforçado diariamente por múltiplos meios, especialmente na lógica neoliberal de consumo.
Erotização precoce: o sintoma mais visível
É aqui que a discussão sobre a chamada “adultização da infância” se torna mais complexa. O problema não é o fato de ser adulto – a vida adulta em si não é algo negativo – mas o processo pelo qual uma criança é empurrada para papéis, responsabilidades e vivências que deveriam estar fora de seu tempo. Isso pode acontecer de várias formas: pelo trabalho e exploração infantil, pela negligência e violência parental, pela exposição precoce ao luto ou pela alienação afetiva.
Desse modo, não concordo com a redução da “adultização” que vem sendo empregado em larga escola, no atual momento. No caso em pauta, o foco é mais específico: trata-se da erotização dos corpos infantis em nossa sociedade de consumo, ou, para usar um termo mais direto e perturbador, de uma pedofilização.

Esse fenômeno se expressa em diferentes frentes: ensaios fotográficos sensuais com modelos segurando bichos de pelúcia ou usando uniformes escolares; campanhas publicitárias que sexualizam meninas; e a infantilização deliberada de mulheres, produzindo um imaginário confuso e perigoso sobre desejo e consentimento.
A erotização de corpos infantis não apenas banaliza o assédio como também dilui a gravidade da pedofilia, transformando um crime em estética comercializada. É inevitável reconhecer que as infâncias são atravessadas por desejos e também por esses scripts de gênero, que prescrevem comportamentos antes mesmo que as crianças possam questioná-los.
Hoje, esse processo é amplificado exponencialmente pelas redes sociais, que se consolidaram como canais de disseminação dessa erotização – ao mesmo tempo em que conectam, silenciosamente, redes criminosas que representam riscos reais à segurança física e virtual de crianças.
O debate se aproxima, aqui, de outra questão que venho defendendo em diferentes frentes, inclusive no caso do ataque à Escola de Estação (RS), em 8 de julho de 2025: as redes sociais são as ágoras da modernidade, praças digitais onde circulam discursos de ódio, violência, pornografia, erotização e crime.
E, como em qualquer espaço público, não há neutralidade. Plataformas digitais operam com algoritmos sofisticados, capazes de mapear interesses, segmentar públicos e potencializar conteúdos – como o próprio Felca demonstrou em seu vídeo. Não estamos diante de espaços ingênuos, mas de arenas onde a atenção é moeda e onde o choque e o tabu geram engajamento.
Nesse cenário, falar em “responsabilização das plataformas” deixa de ser apenas pauta regulatória e passa a ser questão de segurança pública. Enquanto empresas de tecnologia não forem responsabilizadas pelo que circula em seus domínios, enquanto não houver mecanismos efetivos de controle e vigilância, permaneceremos expostos a verdadeiros laboratórios de crueldade, violência e erotização.
A repercussão do vídeo de Felca foi, portanto, mais do que um momento viral: foi um convite para que sociedade, governo e plataformas revisitem seus papéis na proteção das infâncias. A “adultização” – ou, mais precisamente, a erotização precoce – não é um desvio isolado, mas o sintoma visível de uma cultura que naturaliza roteiros de gênero nocivos e que transforma até mesmo o corpo infantil em mercadoria.
O alerta foi dado. Agora, resta saber quem vai ouvir e, mais importante, quem vai agir.
* Anderson Barcelos Martins é Doutorando e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGEDU/Ufrgs)
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.