Em meio a pandemia, Rafaela França, moradora do Complexo do Alemão, na zona norte do Rio de Janeiro, recebeu o dianóstico médico de autismo para a filha Maria de dois anos à época. Diante da nova realidade e da exigência de arcar com um alto custo de tratamento, ela recorreu às redes sociais para pedir auxílio ao tratamento da filha. O vídeo viralizou e com esses recursos financeiros e a união com outras mães, ativistas, profissionais da saúde, ela criou o Núcleo de Estimulação Estrela de Maria (Neem), que oferece tratamento integral a sua e a outras crianças com deficiência desde 2021.
Uma das principais bases do tratamento é o uso do canabidiol, óleo extraído da cannabis, e fornecido pela Fundação Redwood, fundada no começo dos anos 2000 pelo brasileiro José Rocha, nos Estados Unidos. Com uma fazenda legalizada de produção de óleo medicinal à base de cannabis, o foco inicial da empresa foi auxiliar no tratamento de doenças mentais de veteranos de guerra. Atualmente, a fundação é responsável por fornecer o medicamento de forma gratuita a 300 famílias atendidas pelo Neem, que possui atuação em 168 favelas do Rio de Janeiro. “Minha filha usa canabidiol desde os dois anos e hoje ela tem seis. Conseguimos grandes avanços cognitivos com o uso. E apesar de não conseguir a sonhada fala, ela se comunica bem pelo tablet”, conta França.
A partir da mediação desta Fundação, desde junho, o Neem recebeu um reforço nacional no tratamento de crianças neuroatípicas. Uma associação produtora de óleo de Santa Catarina, a Santa Cannabis, passou a atuar no território. A iniciativa oferece tratamento gratuito com óleos de cannabis, além de orientação técnica e acolhimento humanizado, com foco em famílias de baixa renda e crianças neuro divergentes e já atende 12 crianças na comunidade. O trabalho no Complexo do Alemão é um dos projetos sociais apoiados pela Santa Cannabis. Atualmente, cerca de 35% de toda a produção da associação é destinada a projetos sociais que atuam em diferentes regiões do Brasil.
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Ao Brasil de Fato, Rafaela França disse que é um marco para o Neem ter uma associação do Brasil disposta a ajudar. “É algo que nunca aconteceu no território. Falar de operações policiais é enxugar gelo, mas é preciso muita coragem para firmar tratamentos, em especial quando o nível de violência aumenta e há maior necessidade de atendimento devido aos traumas provocados”, diz. Ela incentiva ainda que mais mulheres busquem o tratamento. “Mães de territórios de favela precisam ter coragem de iniciar algo que é negado para nós até mesmo pela falta de informação”, defende.
O Pedro Sabaciauskis, presidente da Santa Cannabis, destaca a importância de levar o debate da cannabis medicinal para dentro das favelas, não só por ser considerado um tratamento de difícil acesso por conta do custo, como por ser motivo de criminalização do território. “É nas periferias que mais se sofre com os efeitos da proibição, mas também é onde a cannabis mais transforma vidas. No Complexo do Alemão, a mobilização comunitária e o apoio de lideranças locais foram fundamentais para garantir a confiança dos moradores e o acesso seguro e continuidade ao tratamento. Em outros projetos ou comunidades, o desafio pode estar na barreira de informação ou na necessidade de atendimento especializado, como nos projetos voltados ao autismo ou a síndromes raras”, detalha Sabaciauskis ao Brasil de Fato.
No acompanhamento destas crianças está a médica Bárbara Monteiro. Ela explica que os principais benefícios do uso da cannabis medicinal estão no tratamento do Transtorno do Espectro Autista (TEA) e dores crônicas. No caso dos pacientes com TEA, o canabidiol promove “a redução das crises, o aumento do foco, da coordenação motora, qualidade do sono em tempo e qualidade e organização dos pensamentos”, diz. Já nos casos de dores crônicas, além do alívio da dor, “há o aumento da energia e da disposição levando a esses pacientes voltarem a realizar novamente seus hobbies/ atividades prazerosas”, diz. Ela lembra que há algumas contraindicações como para gestantes, lactantes, pessoas com diagnóstico de esquizofrenia ou histórico familiar para o quadro e pessoas com sintomas psicóticos.