Centenas de pessoas prestigiaram, na manhã deste sábado (16), a comemoração dos 34 anos da Feira Ecológica do Bom Fim (FEBF), na avenida José Bonifácio, junto ao Parque da Redenção, em Porto Alegre. Com o tema “Semeando as Relações”, a celebração contou com shows, atividades culturais e educativas, além de atrações voltadas ao público infantil. A abertura da festa teve o cortejo das infâncias.
A nutricionista e bióloga Maria Rita Macedo Cuervo, professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e madrinha da feira, destacou a importância do evento. “É um privilégio festejar esses 34 anos de feira, que é muito mais que um espaço de compra de alimentos saudáveis, de comida de verdade. Essa feira é um espaço onde pulsa vida, identidade e memórias.”
Cuervo ressaltou ainda a força das relações construídas no local. “O tema Semeando as Relações não poderia ser mais adequado. Aqui se constrói confiança, afeto. Pesquisei na feira e o que mais apareceu foi isso: confiança. As pessoas sabem que aquele alimento é agroecológico. Cada escolha que fazemos aqui tem reflexos sociais, ambientais e econômicos. É um consumo político que respeita quem produz e o planeta.”

Tradição que passa de geração em geração
Entre os feirantes, a presença de jovens que seguem a tradição familiar se destacou. Mariana Loewenstein Justin, de 26 anos, contou que sua família foi uma das primeiras bancas que começou na feira. “Eu vim na barriga da minha mãe e hoje estou aqui com a minha filha, que tem quatro meses. Saímos de Itati às 1h30 da manhã, montamos a banca às 4h e só desmontamos às 17h. Eu gosto, isso pra mim é tudo. Temos uma agroindústria familiar, fazemos chips e pastas de banana, e meu marido e meu pai trabalham na roça com banana, batata-doce e aipim.”
Vitor Schardosim, 25 anos, também compartilhou sua experiência de vida ligada à feira. “Sou feirante desde que me conheço por gente. Meus pais começaram com agricultura orgânica por causa da minha saúde. Com muita luta, eles melhoraram e hoje posso continuar esse trabalho. A diversidade, os produtos saudáveis e a relação com os consumidores tornam essa feira muito bonita. Agradeço a todos que vêm até aqui, fortalecendo e ajudando a gente. Feliz aniversário para a feira e para nós.”

Integrante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Hulli Marcos Zang comentou sobre a resistência e diversidade presente no evento. “Hoje é um dia de comemoração, mas também de lembrar a luta diária dos agricultores e agricultoras que vêm de diferentes regiões do estado. Há bancas de terceira e quarta geração.”
A força da agroecologia e da agricultura familiar
O papel da agroecologia é reforçado pelo relatório Agroecology and the Right to Food (Agroecologia e o Direito à Alimentação), do relator especial da ONU Olivier de Schutter, que aponta seu potencial para alimentar populações vulneráveis e reparar danos ambientais. “A agroecologia oferece um modelo que equilibra justiça social e sustentabilidade ambiental”, afirma o documento.

No Brasil, a agricultura familiar é a base da produção alimentar. Segundo dados do Censo Agropecuário de 2017 (IBGE), o país possui aproximadamente 3,9 milhões de propriedades familiares, o que representa 77% de todos os estabelecimentos agrícolas e 67% das vagas de trabalho no meio rural. Além disso, o setor é reconhecido por ser o principal fornecedor da maior parte dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros, como hortaliças, feijão e mandioca.
“Essa feira mostra que é possível alimentar o mundo com alimentos saudáveis sem depender de multinacionais. Agroecologia é alegria, cultura, teatro, música e produção de alimentos. Cada família presente tem papel fundamental na soberania alimentar e na saúde da população”, ressalta o assentado Huli Zang.
A fala de Zang, do Assentamento Filho de Sepé, em Viamão, é corroborada por feitos concretos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem terra (MST). Um exemplo emblemático é a produção de arroz agroecológico. O MST consolidou-se como o maior produtor de arroz orgânico da América Latina, mostrando na prática a viabilidade da agroecologia em larga escala.

Um espaço de resistência, cultura e comunidade
Vereador de Cachoeirinha e militante ambiental, Leonardo da Costa destacou o caráter democrático e social da feira. “É um espaço com proposta democrática e social fundamental. Aqui, é possível viver a experiência de alimentos saudáveis, sem agrotóxicos. As grandes redes de supermercado estão tomando as cidades, mas esta feira permanece como um espaço de resistência e possibilidade, gerando emprego, renda e fortalecendo pequenos produtores. É algo muito diferenciado, que precisa ser valorizado e prestigiado.”
Essa percepção reflete uma tendência nacional: impulsionado por um aumento significativo no consumo, o mercado de orgânicos no país já movimenta R$ 7 bilhões. Segundo dados do Instituto Organis, a proporção de brasileiros que consomem esses produtos saltou de 15% em 2017 para 36% em 2023. O apoio à agricultura familiar, base desse setor, também cresce, como demonstra o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que no início de 2024 registrou um aumento de 87,5% no número de agricultores beneficiados em relação ao ano anterior.

O integrante da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) Francisco Milanez enfatizou o caráter histórico do local. “A feira foi uma conquista muito importante porque agregou a produção local e se transformou num ponto cultural. A Agapan começou há 54 anos, e um dos fundadores, José Lutzenberger, saiu de uma multinacional de veneno. Tudo o que se discutia era sobre como ter alimentos sem veneno. Daí surgiram movimentos que originaram a feira.”
O trabalho dos feirantes vai além do espaço fixo como apontou a presidente da Associação de Mulheres Maria da Glória, Ângela Comunal, ao falar sobre a importância das hortas comunitárias. “A feira é fundamental para termos alimento saudável. No início parecia uma loucura, mas percebemos que é muito importante. Nós do Maria da Glória sempre pensamos em alimentação saudável, não usamos produtos industrializados. Nosso tempero vem da nossa horta comunitária, e aqui recebemos muito apoio, doações de produtores. A feira vai além da comercialização: é uma rede de troca de experiências e saberes.”

Consciência ecológica desde a infância
A 34ª edição da Feira Ecológica também destacou a importância de cultivar a conexão das crianças com a natureza. A bióloga Ananda Noc, do projeto Despertar Vivências Ecológicas, explicou: “A gente só ama aquilo que conhece. Que as crianças possam conhecer e conviver com a natureza para, então, amar e querer cuidar”.
Inês Monteiro, artista educadora, ressaltou a conexão entre arte e alimentação. “Quando falamos desta feira ecológica, falamos de alimento saudável também. É sobre trabalhar a arte com a comida, com a alimentação, e conhecer de onde vem nosso alimento.”

Para além da feira: solidariedade e políticas públicas
Representando o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea-RS), Anny Moraes, da Marcha Mundial de Mulheres, destacou a importância da feira no cenário atual. “Celebrar é fundamental diante de todo o cenário de mudanças climáticas e insegurança alimentar. O Brasil saiu do Mapa da Fome graças às políticas públicas, aos programas de aquisição de alimentos, à agricultura familiar, à transferência de renda, ao apoio às cozinhas solidárias e às hortas comunitárias. Eu coordeno um projeto de horta urbana e comunitária em Porto Alegre e sei da importância e da potência desses espaços.”
Reforçando a importância de iniciativas como a agricultura familiar, o Brasil alcançou um marco fundamental: o país saiu oficialmente do Mapa da Fome da ONU. A confirmação foi feita pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) em julho de 2025, com base em dados do triênio 2022-2024, que mostraram que a prevalência da subnutrição na população brasileira ficou abaixo do limiar de 2,5%.

A solidariedade também é um pilar, como explica Carina de Lima Ferreira, coordenadora da Amurt-Amurtel, que organiza a doação dos excedentes da feira. “O excedente doado pelos feirantes chega ao nosso projeto no extremo sul de Porto Alegre, onde é distribuído em cestas de orgânicos para famílias vulneráveis. São mais de 200 mãos envolvidas para que cada cesta chegue às famílias.”
Cultura que alimenta Porto Alegre
Frank Jorge, ícone do rock gaúcho, encerrou a festa e falou de sua relação afetiva com o evento. “Sempre gostei da feira, uma maneira de valorizar a agricultura familiar, alimentos não processados, alimentos orgânicos, sem veneno. Isso sempre me encantou, me encanta muito. Aqui é muito bonito observar a adesão da população a uma produção de alimentos saudáveis. Acabou se criando uma relação de carinho, de reciprocidade. É um orgulho de Porto Alegre ter essa feira ecológica há 34 anos.”

Participaram ainda da programação, Renato Müller, educador do projeto Fábrica de Gaiteiros, e o duo instrumental InDUO, formado por Luizinho Santos (sax) e Bethy Krieger (piano), que mescla música instrumental e MPB com linguagem jazzística.
Resiliência, diversidade e amor pela feira
Frequentador há nove anos, Felipe de Jorge Petri ressaltou a resiliência dos produtores. “Eu participo desde que minha esposa engravidou. Compramos orgânicos desde então. É o alimento que é o remédio hoje em dia. O Rio Grande do Sul é um dos principais produtores, e muitos perderam tudo em enchentes passadas. A resiliência desses produtores é algo fenomenal.”

Também frequentadora assídua, a uruguaia Rosa Beltrame, que vive há 48 anos no Brasil, definiu sua relação com a feira em uma palavra: amor. “Amor pela natureza, pelas pessoas, pelos pequenos, pelos pets. Aqui se junta a diversidade do amor.” Ela lembrou que a feira orgânica é fruto de muita luta dos agricultores e que participar de sua 34ª edição é uma honra.

Mestre de cerimônia e um dos organizadores da feria, Shiva Ruiz Tagle Braga, destacou a força coletiva. “São 34 anos de encontros, trocas de saberes e sabores. A comercialização é só uma ponta do que acontece aqui. Enfrentamos desafios como a pandemia e as enchentes, e nunca fechamos. Houve uma rede de solidariedade enorme para ajudar colegas que perderam tudo. Este é um coletivo muito forte.”
Shiva concluiu reforçando a importância da proposta agroecológica: “Frequentem sempre a feira. Nossa proposta não tem tanto apoio como outras, mas nunca deixamos de lutar. O Brasil, de novo, sai do Mapa da Fome, muito por causa da agricultura, do MST, e de todos os produtores conscientes que estão aqui.”
