No teatro da Feevale, na última quarta-feira, dia 13 de agosto, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, anunciou pacote de incentivos destinado aos profissionais da educação e estudantes da rede estadual, espaço terceirizado para evento espetacular, compartilhado nas vias informacionais. Diante de plateia de cerca de 1,1 mil gestores da educação estadual, foi apresentado o conteúdo do programa de “Reconhecimento da Educação Gaúcha”, que deverá ser implementado imediatamente. Consiste em uma mobilização conjunta a fim de qualificar o ensino público no diapasão do espírito de mercado.
O pacote reproduz o que os partidos neoliberais já estão aplicando nos municípios e estados da federação brasileira. Não há qualquer inovação política. A palavra-chave da proposição é a de “estimular” a melhoria contínua da educação, por meio da quantificação, ou melhor, por política de monetização individual – tal como nas plataformas das Big Techs – do desempenho dos professores e demais profissionais da educação e, inclusive, dos estudantes.

Grosso modo, o pacote consigna 14º salário completo como prêmio máximo aos docentes e funcionários da escola que alcançarem 100% das metas e, igualmente, premiação aos três alunos de melhor rendimento por sala de aula. Além de sorteio de prêmio aos estudantes. Assim, as escolas da rede estadual ingressarão em nova fase da lógica do desempenho e da gamificação, melhor dizendo, adotarão uma espécie de “pedagogia da resiliência” na qual – independentemente da precária existência social do espaço escolar – os mais aptos serão premiados na sua singularidade e o restante será contemplado com a liberação de dopamina do jogo.
Trata-se, objetivamente, de pedagogia de tom neoliberal. Ela é vazia de qualquer esperança transformadora, porque impõe a completa sujeição dos oprimidos à opressão da austeridade econômica. É a política do pior que investe no cosmético e no gerenciamento do caos, que resulta de décadas de destruição da Escola Pública.
Em realidade, o pacote registra uma perversa lógica paradoxal, pois o que envenena correntemente a sociedade gaúcha se compõe, de igual modo, como o remédio para a cura das feridas abertas por sua própria ação nefasta. Fenômeno que se encaixa perfeitamente na descrição, elaborada por Nancy Fraser, do sistema contemporâneo de produção e reprodução da vida social que, amiudadamente, devora a sociedade civil como uma cobra comendo o próprio rabo, quer dizer, capitalismo canibal, que se esconde por meio do véu da competitividade e das metas que devem ser alcançadas, independentemente da realidade lúgubre. O estímulo pedagógico neoliberal configura-se na reprodução da pedagogia de mercado, que se desdobra em resposta automática na busca de cumprimento das metas, oferecendo ao sujeito uma recompensa imediata. É a psicologia comportamental que impulsiona a produção reificante, ordinariamente, transportada para o espaço escolar. Ela funciona como máquina de aniquilar cidadania e de ampliar a acumulação de capital.

Seguramente, o pacote consigna estímulo pedagógico neoliberal e representa política desumana aplicada, sobretudo, aos pobres rio-grandenses. É a política de malvadez e cinismo neoliberal aplicada como governança de boa-fé. Mesmo que a “brilhante” colunista do maior jornal da imprensa rio-grandense diga mil vezes, com a intenção de defender o indefensável, que “desumano é aceitar que uma criança não aprenda porque nasceu numa família pobre e desestruturada, com pais iletrados que não conseguem ajudar no tema de casa”, a pedagogia crítica, em nome dos oprimidos, deverá responder: desumano é a naturalização da pobreza e o crescente empobrecimento dos profissionais da educação no estado gaúcho; também, desumano é imaginar que seres humanos em situação dramática de pobreza e vulnerabilidade devem alcançar metas a fim de serem premiados por um Estado neoliberal caridoso.
Desumano é culpabilizar docentes, com remuneração aviltante e pauperizados, pelo baixo índice da educação pública. Não é tudo. Desumano é afirmar que há, por parte de professores, a ideia de que o desastre da aprendizagem é culpa da presença de sujeitos empobrecidos na sala de aula, quando na verdade o desumano é a cobrança perversa por resultados satisfatórios sobre as vítimas da política neoliberal, sem a mínima aplicação de políticas públicas de transformação das condições hoje precárias de exercício profissional no espaço escolar, assim como política de renda e cidadania nas áreas sociais de profunda desigualdade econômica. Enfim, desumano é a crítica vulgar, carregada de cosmético, que empobrece o jornalismo gaúcho. A miséria da crítica é, de igual modo, parte da miséria geral imposta pela ordem neoliberal.
Dito em linguagem direta, o mal-estar da educação gaúcha é o resultado de décadas de empobrecimento das instituições públicas de ensino e da queda do bem-estar dos profissionais da educação em um quadro maior de crescente desigualdade social, agravado ainda pela catástrofe climática. De forma que a desgraça educacional gaúcha é derivada da política neoliberal de terra arrasada e, certamente, jamais poderá se configurar como remédio do caos. Em suma, o grau de desenvolvimento da educação de uma sociedade é decorrente do desenvolvimento geral de todos os cidadãos.
O governo neoliberal gaúcho apresenta um pacote que reproduz a lógica dos programas televisivos de domingo que, no afã de aumentar a audiência, espetacularizam a desgraça dos pobres com a competição de todos contra todos e sorteios generosos. É a política do pior aplicada sobre uma comunidade escolar carente de cidadania. Ela dissolve perversamente o problema grave da educação entre sujeitos sujeitados pela política de austeridade de gasto baixo com a sociedade e benefícios de toda a ordem aos super-ricos. Malvadez neoliberal que negligencia a economia política de distribuição de renda como elemento central para o salto qualitativo do processo ensino-aprendizagem.
* Ronaldo Queiroz de Morais é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP).
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.