Na antiga fazenda cafeeira Fortaleza de Sant’Anna, na região da Zona da Mata de Minas Gerais, a paisagem é marcada por grandes extensões de matas preservadas, com água abundante, utilizada para suprir a demanda de consumo, produção e lazer das famílias. O território foi conquistado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
No local, o plantio de alimentos, por meio dos Sistemas Agroflorestais (SAFs), se mistura com a produção de gado leiteiro e apresenta a diversidade do assentamento Dênis Gonçalves, localizado entre os municípios de Chácara e Goianá. Ali, a Mata Atlântica ainda resiste e é cultivada junto com alimentos, saberes e modos de vida.
A Mata Atlântica
Com aproximadamente 1,3 milhão de quilômetros, a Mata Atlântica é um dos biomas mais ricos em biodiversidade e, no Brasil, abarca o trecho entre o Rio Grande do Sul e o Rio Grande do Norte, se adentrando também para áreas do interior do país, como Minas Gerais.
Mesmo se fazendo presente em 17 estados brasileiros, predominantemente na costa, o bioma, que abriga mais de 8 mil plantas endêmicas (nativas) segundo o Atlas dos Remanescentes Florestais da Mata Atlântica (2022), se vê ameaçado pela mineração, pela expansão urbana e pelo agronegócio, que promove desmatamento ilegal, agropecuária predatória e monoculturas de cana, café e eucalipto na região.
Na contramão da exploração do agronegócio, no assentamento Dênis Gonçalves, se constrói uma relação mais coletiva entre as pessoas e a natureza. Preservar os bens da natureza é, então, um compromisso das famílias.
A relação entre o território, a natureza, a defesa da Mata Atlântica e o MST pode ser compreendida por meio das histórias de vida dos e das sem terra que lá vivem. Segundo Rogério Coutinho, militante do movimento e presidente da Coopermatas, uma das cooperativas da regional, o local é responsável pelo cuidado com o abastecimento hídrico e a alimentação escolar de parte da população da região.
“A gente faz entrega de mais de uma tonelada e meia de alimentos em quatro municípios da região. Nosso território é bem rico, nós temos uma grande fatia da Mata Atlântica e um dos maiores trechos de água da região, que abastece quatro municípios”, explica.
Essa relação de coletividade, segundo Coutinho, só surgiu em sua vida a partir da organização do MST. Foi na luta pela terra, que ele aprendeu a importância de cuidar do bioma em que vive.
“O MST trouxe também o compromisso de plantar árvores para cuidar da Mata Atlântica. Esse princípio está em todas as nossas linhas produtivas: no leite, no gado, nas hortaliças. Além de reflorestar, isso organiza nosso sustento, nosso modo de vida e nosso alimento.”, pontua.
Do sonho da terra à agroecologia
O estado de Minas Gerais já teve 46% de seu território coberto pela Mata Atlântica. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), hoje, o bioma representa apenas 10%, e está distribuído em áreas pequenas e fragmentadas. No assentamento Dênis Gonçalves, restou apenas uma parte da Mata Atlântica, que já foi expressiva na região.
Segundo Júlia Guerra, militante do setor de produção do MST, ainda é possível ver a degradação da antiga fazenda e há muito trabalho a ser feito.
“Mesmo com mais da metade da nossa área preservada, herdamos paisagens muito degradadas por décadas de exploração”, conta.
A tarefa principal das famílias assentadas é a coexistência sustentável. “Nosso desafio é recriar a Mata Atlântica de forma integrada aos sistemas de agrobiodiversidade. Não é só manter a floresta intocável, mas criar novas áreas de interação entre seres humanos, animais, cultivo e cultura”, descreve Guerra.
Como coordenadora do viveiro de mudas do Assentamento, ela atua na rede de coletores de sementes da Mata Atlântica da região, um processo fundamental para a recuperação do bioma. A proposta é multiplicar espécies nativas e desenvolver agroflorestas produtivas, unindo conservação e sustento.
O Ministério do Meio Ambiente (MMA) estima que a produção no bioma representa 70% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro e mais de 120 milhões de pessoas vivem nos estados em que a Mata Atlântica é originária.
Também na Mata Atlântica estão 8 das 12 bacias hidrográficas do Brasil. São elas: Atlântico Nordeste Oriental, Atlântico Nordeste Ocidental, Atlântico Leste, Atlântico Sudeste, Atlântico Sul, Paraná, Paraguai e São Francisco.
Histórias
O bioma faz parte do cotidiano das famílias que vivem no local, mas foi ressignificado por meio do debate da agroecologia e da cooperação no MST. Um dos exemplos desse processo é a história de Geraldo Majela dos Santos, assentado no Dênis Gonçalves.
O agricultor conta que carrega desde a infância uma relação íntima com a terra: “sempre tive o sonho de ter um pedaço de terra com um córrego passando em frente, com água limpa. Meus pais trabalhavam na agricultura e me levavam para passear nas florestas.”
Sua trajetória com a agroecologia começou junto com o MST, a partir da produção de milho crioulo no Sul de Minas e de experimentos agroflorestais que combinam café, mucuna e bananeira. Ele relembra uma entrevista que fez para um trabalho da faculdade sobre diálogo de saberes, com Seu Sebastião, do Sul de Minas.
“[ele conta que] na juventude dele, a terra era dividida entre terra de campo, terra de mata [Atlântica] e terra de cultura [Cerrado]. A terra de mata era explorada e tinha valor, por isso, foi muito degradada. E só depois, com o calcário [sendo descoberto], o Cerrado passou a ter valor para a agricultura. Mas, junto, veio a ocupação pelo agronegócio e a perda de frutos nativos como pequi, marolo e gabiroba, que sempre fizeram parte da alimentação do povo”, relembra Majela.
Para Júlia Guerra, a relação com a Mata Atlântica é também espiritual. “Eu tive um padrinho, Zé Antônio, que era raizeiro e benzedeiro. Ele me ensinou sobre plantas e raízes. Chamava seu conhecimento de ‘religião do caboclo’. Foi assim que criei meu vínculo com a mata.”
Rogério conta que a forma como o MST se organiza para pensar a relação do ser humano com a natureza é o que diferencia o trabalho. Nascido no interior, o agricultor se identificou com a luta pela terra pela necessidade, mas foi a nova forma de pensar a terra que o fez construir a agroecologia em seu território.
Essas histórias que atravessam a vida de muitas pessoas que nasceram no campo explicam a importância da defesa dos territórios e da construção de modelos que sejam antagonistas ao pensamento do agronegócio, que trata a natureza como mercadoria. Por isso, Majela segue investindo em sistemas que conciliam produção e floresta.
“Muita gente pensa que solo que não produz soja é ruim, mas ele pode produzir caju e uma infinidade de alimentos. Com piqueteamento para o gado, por exemplo, é possível ter renda boa sem destruir a mata”, explica.
Em meio às espécies cultivadas na Mata Atlântica, estão saberes tradicionais que contribuem para a saúde coletiva. Nesse resgate das tradições, Júlia Guerra traz o exemplo de seu fruto favorito, que é a copaíba. A agricultora explica que o suco de copaíba, extraído da árvore Copaifera, é conhecido por suas propriedades anti-inflamatórias, cicatrizantes e antimicrobianas. “A copaíba é um grande remédio, a seiva dela é sagrada”, afirma.
Mata viva é alimento saudável na mesa
As ações no território do MST na Zona da Mata mineira mostram que conservar e restaurar a Mata Atlântica não é apenas sobre a preservação das árvores, mas é um compromisso com recuperar o que o agronegócio e o latifúndio destruíram. Para isso, na avaliação do movimento, é preciso criar sistemas produtivos que respeitam e fortalecem a biodiversidade, gerando água, alimento e cultura.
No lugar onde antes o monocultivo de café dominava, com o desmatamento da floresta nativa para gerar mais lucros, nascem agroflorestas semeadas pelas mãos dos e das agricultoras sem terra, que alimentam um sentimento coletivo de conhecimento da Mata Atlântica, cuidado e memória, onde cada árvore plantada é também um gesto de resistência e futuro.