O resultado do primeiro turno das eleições presidenciais na Bolívia revelou um cenário inédito: pela primeira vez em duas décadas, a esquerda ficou fora do segundo turno. No entanto, a votação nula, liderada pelo ex-presidente Evo Morales, alcançou quase 20% dos votos, o maior índice da história do país.
De acordo com a avaliação de Martin Moreira, economista e cientista político boliviano, Morales conseguiu canalizar cerca de 1,6 milhão de votos nulos, o que corresponde à base histórica do Movimento ao Socialismo (MAS), que jamais havia perdido uma eleição presidencial na Bolívia.
“Podemos dizer que houve uma demonstração de força da esquerda, mas não um convencimento da população, focada na imagem de Evo”, disse. Para o analista, o ex-presidente demonstrou que ainda é capaz de mobilizar sua base histórica, mas o fez “de maneira destrutiva, enfraquecendo a própria esquerda em vez de projetar alternativas.”
O impacto imediato foi a derrota dos candidatos de perfil progressista. Andrónico Rodríguez, afilhado político de Morales, foi hostilizado em seu reduto no Chapare, em Cochabamba, e obteve pouco mais de 8% dos votos. Eduardo del Castillo, ex-ministro do governo Luis Arce, somou apenas 3,1%. Ambos foram engolidos pela estratégia de Morales, que optou por transformar o voto nulo em arma de protesto contra o que considera uma eleição fraudada e ilegítima.
Esse cenário abriu espaço para a ascensão da direita. O senador Rodrigo Paz, de Tarija, liderou o primeiro turno com 31% dos votos, enquanto Jorge “Tuto” Quiroga, ex-presidente boliviano e ex-vice de Hugo Banzer, ficou em segundo com 27%.
O empresário Samuel Doria Medina, favorito até dias antes da votação, caiu para a terceira colocação com 19%. O segundo turno, marcado para 19 de outubro, será disputado entre Paz e Quiroga, dois representantes das elites políticas tradicionais.
Para Martín, a divisão provocada por Morales foi decisiva. “Com sua angústia e sua mesquinharia, Evo destroçou a esquerda na Bolívia e abriu caminho para uma duas candidaturas que encarnam a desilusão de alguns movimentos sociais.”
Nesta segunda-feira (18), em um evento público em Cochabamba, Evo Morales celebrou a adesão ao voto nulo. “Há duas semanas começamos a campanha pelo voto nulo. Em apenas duas semanas, o povo compreendeu perfeitamente. Somente duas semanas de campanha. Seguramente alguns companheiros dirigentes tiveram problemas, perguntaram: por que só agora? Por que só agora? Mas o povo é tão consciente, o povo é tão sábio. Este voto nulo é um voto de castigo à velha direita e à nova direita.”
O analista aponta que a insistência do ex-presidente em liderar o voto nulo se converteu em obstáculo para uma recomposição do campo progressista. O governo que emerge desse processo, alerta Martín, terá uma orientação claramente liberal.
Rodrigo Paz e Jorge Quiroga defendem ajustes econômicos, medidas de choque e políticas de austeridade, em sintonia com o empresariado de Santa Cruz e organismos internacionais. A expectativa é de um mandato voltado ao mercado, sem espaço para movimentos populares e com risco de retrocessos em políticas conquistadas desde 2006.
A crise econômica, marcada por inflação de 25% ao ano, escassez de combustíveis e falta de dólares, acelerou o desgaste do MAS. O presidente Luis Arce, que não tentou a reeleição, saiu de cena enfraquecido. Evo Morales, por sua vez, mesmo proibido de ser candidato, se manteve como figura central da disputa, mas à custa da unidade da esquerda. Seu protagonismo ainda mobiliza setores populares, mas sua estratégia deixou a esquerda sem representação efetiva no segundo turno.
“Evo Morales não será candidato nunca mais. Diante de um governo liberal, o primeiro a desaparecer do mapa será Evo Morales”, sentencia Martin Moreia.