Naziazeno Barbosa saiu nervoso de casa. Não conseguia pensar em outra coisa a não ser arrumar dinheiro para pagar o leiteiro. Devia 53 mil réis*. Tinha sofrido ameaças de que se não pagasse todos os atrasados não receberia mais no dia seguinte a bebida sagrada do filho e da mulher. No bonde, pensou em dinheiro. No serviço público, onde era um modesto e reles funcionário, pediu empréstimo para o chefe e alguns conhecidos. Só recebeu não e outras desculpas esfarrapadas. Saiu à rua à cata de amigos. Tomou dezenas de cafés pelos bares. Apelou a bancos, amigos dos amigos, lojas de penhores, agiotas e todo tipo de gente que julgava conhecer. Sempre com negativas, até encontrar uma saída – vender uma joia rara da família.
Com o dinheiro em mão, depois de muitos ‘perrengues’, foi para casa, sem ter trabalhado. Deixou o dinheiro em cima da mesa. O leiteiro chegaria cedo, deixaria o leite e pegaria o dinheiro. Ou não deixaria nada e iria embora sem dinheiro. Passou uma noite de cão, sem ofensa aos cães. Passou se revirando, se contorcendo em pensamentos negativos, com medo de que os ratos destroçassem e roessem o dinheiro obtido a um custo altíssimo. Seria o seu fim. O fim do leite.

Este é, em síntese, o enredo do livro Os Ratos de Dyonelio Machado, escrito em 20 dias de 1935, há 90 anos atrás, e que terá no sábado, 23 de agosto, a partir das 17h45min, em frente ao Mercado Público do Centro Histórico, o 1º Dia de Naziazeno, uma atividade que visa unir as pessoas entorno da valorização do patrimônio gaúcho, seja ele literário, cultural, arquitetônico, ambiental.
Idealizador
O idealizador da homenagem ao escritor, que completa 130 anos de nascimento no dia 21 de agosto de 2025, é o intelectual Jonas Kunzler Moreira Dornelles, pesquisador dedicado à obra do escritor, à preservação de sua memória e o seu impacto no cenário cultural do Estado. Kunzler se formou em Teoria da Literatura pela PUCRS e fez doutorado sanduíche** pela Universidade de Frankfurt am Main (Alemanha), idealizador das Caminhadas Literárias pelo Patrimônio de Dyonelio e autor do inventário da casa do escritor no Bairro Petrópolis como patrimônio de Porto Alegre. “O ponto de partida é o potencial imaginativo da literatura, que mistura sensibilidade, entretenimento e transformação das consciências”, diz ele.
O mote inspirador é o Bloom’s Day (Dia de Bloom), que é um Dia de Naziazeno irlandês. Nesse dia, a celebração do personagem da obra Ulisses, de James Joyce, serve de pretexto para atividades de todos os tipos e gêneros na capital Dublin. “Agora, aqui em Porto Alegre, iremos às ruas relembrar a obra prima, assim como de fatos significativos de sua biografia, entremeados com a história de nossa cidade”, enfatiza Kunzler.
Nessa 1ª Edição, o ato vai representar a odisseia e todos os passos de seu personagem Naziazeno, que certo dia vem da periferia da cidade até o Centro, em busca de dinheiro para pagar uma dívida. Quantos não passam por isso diariamente? “Quantos não correm atrás de financeiras, agiotas, bancos, amigos, parentes, consignados do INSS para salvar a sua pele das agruras das dívidas?”, pergunta o autor da ideia.

No trajeto entre um espaço e outro percorrido por Naziazeno naquele fatídico dia do dinheiro do leiteiro, serão lidos trechos do livro nos cenários onde eles acontecem, compartilhando os momentos de angústia do personagem e recuperando outras memórias de Porto Alegre.
Kunzler reforça que, nesse clima literário, é proposto que a caminhada seja feita com pessoal vestindo roupas antigas, “como se estivéssemos nos anos 1930”. O figurino pode ser aquele que estiver à mão, afinal, Naziazeno era apenas um “pobre diabo”. As roupas podem estar remendadas, o importante é entrar no clima. Mas, dentro do conceito, as três melhores fantasias ganharão como prêmio livros de bom nível ou “muito bons”, nas palavras do idealizador. “Nossa ideia é que o Dia de Naziazeno ocorra sempre no primeiro sábado depois do aniversário de Dyonelio Machado, cuja data é dia 21 de agosto”, diz.
Os Ratos, romance do escritor Dyonélio Machado, publicado em 1935, é considerado o mais importante do autor. O livro nasceu de um pedido do escritor Érico Veríssimo para participar de um concurso literário. Foi publicado pela primeira vez em 1935 pela Ficção Urbana. O livro 0s Ratos tem 28 capítulos, 192 páginas de pura agonia e foi escrito em 20 noites. Dyonelio era político comunista e psiquiatra e ganhou com a obra o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras.
Natural de Quaraí, morreu em Porto Alegre em 19 de junho de 1985. Dyonelio era um gigante, mas escreveu pouco: 12 livros na sua trajetória de escritor de 1927 a 1982. Ficou dois anos na cadeia nos tempos da ditadura de Getúlio Vargas por suas posições ideológicas. Exercia a todas as profissões com uma paixão desmedida, sem controle. Outro livro famoso foi O louco do Cati, escrito em 1942. Só por curiosidade: no site de árvores genealógicas do Brasil há 70.842 registros de sobrenome Naziazeno. O personagem de Os Ratos tem como primeiro nome Naziazeno.
*Hoje, conforme o Banco Central, seriam R$ 18.500,00.
** O doutorado sanduíche é um programa de estudos no qual o estudante de pós graduação realiza parte de seu trabalho em uma universidade no exterior. A ideia é que o pesquisador aproveite a infraestrutura ou as condições de outra instituição de ensino superior para enriquecer o seu trabalho.