Entre 1931 e 1945, a China foi alvo de ataques militares brutais perpetrados pelo Japão. Ao longo dos 14 anos da chamada Guerra de Resistência do Povo Chinês contra a Agressão Japonesa, mais de 20 milhões de chineses perderam suas vidas. As forças japonesas praticaram massacres sistemáticos contra civis, estupros em massa e experimentos biológicos e químicos desumanos, além de provocar fome generalizada e surtos de doenças. Em 2025, a China está celebrando os 80 anos da vitória da resistência contra essa agressão.
Apesar da magnitude devastadora dos crimes contra a humanidade cometidos pelo Japão nessa época, eles permanecem significativamente menos conhecidos no cenário global quando comparados ao Holocausto e às atrocidades perpetradas pelo regime nazista na Europa.
Esse desequilíbrio na memória histórica coletiva reflete, em grande parte, a hegemonia cultural e diplomática exercida pelos países do Norte Global, com destaque para a influência de Hollywood e sua extensa produção cinematográfica sobre a Segunda Guerra Mundial, que invisibiliza a resistência determinada do povo chinês.
Na América Latina, por exemplo, diversos países, como Brasil, Argentina e Uruguai, abrigam museus e monumentos dedicados à preservação da memória dos crimes nazistas, enquanto a brutalidade japonesa perpetrada contra a China e outros países asiáticos raramente é lembrada.
A escala do terror
A agressão japonesa foi oficialmente iniciada em 1931, com o Incidente de Mukden (ler mais abaixo). Mas o Incidente da Ponte Lugou (chamada Ponte Marco Polo no Ocidente) em 7 de julho de 1937, representou a escalada da agressão japonesa na China. O conflito aconteceu em Wanping, na região metropolitana de Pequim.
Em poucas semanas, Pequim – que ainda não era a capital chinesa–, foi tomada pelos japoneses que partiram para Xangai. A Batalha de Xangai durou três meses, a China teve mais de 250 mil baixas e o Japão, 40 mil.
Antes de finalizar o ano, em 13 de dezembro, as tropas japonesas atacam Nanjing. Embora ainda fosse oficialmente a capital chinesa, o governo do Kuomintang (KMT) de Chiang Kai-shek havia se transferido no mês anterior para Chongqing, no interior do país, reconhecendo a exposição de Nanjing na costa leste – mais próxima ao Japão – e sua vulnerabilidade também devido ao fácil acesso por rios.
Nanjing foi palco de um dos eventos mais brutais cometidos pelo Japão na China. Durante seis semanas, soldados assassinaram mais de 300 mil pessoas entre soldados rendidos e civis.
O Tribunal de Crimes de Guerra de Nanjing – um dos vários tribunais criados para julgar os crimes do Japão na época –, documentou 28 massacres onde 190 mil pessoas foram mortas. Os métodos incluíam fuzilamentos em massa, enterros de pessoas vivas em valas comuns e mortes por incêndios.
Um dos crimes de guerra foi o “Hyakunin-giri”, uma competição entre soldados para ver quem decapitava primeiro cem pessoas com uma katana. Relatórios de batalha dos japoneses, registraram a competição entre os soldados Toshiaki Mukai e Takeshi Noda, que começou em Xangai e terminou em Nanjing.
Escravização sexual
O Tribunal calculou pelo menos 20 mil casos de violência sexual. Os estupros foram generalizados e as vítimas foram mulheres e crianças de várias idades.
Em Nanjing e outros lugares da China e da Ásia, o exército japonês implementou o sistema de “Mulheres de Conforto” um esquema para o estupro sistemático de mulheres. Elas eram sequestradas ou enganadas com promessas de trabalhar como cozinheiras ou lavandeiras, e levadas para as “estações ou postos de conforto”, basicamente centros onde as mulheres sofriam estupros coletivos e de forma sistemática.
As “mulheres de conforto” foram uma prática militar oficial do imperialismo japonês. Além da China continental, foram implementadas na Coreia, Taiwan, Hong Kong, Mongólia, Filipinas, Indonésia, Malásia, Singapura, Birmânia/Myanmar, Tailândia, Vietnã, Camboja, Laos, Micronésia, Ilhas Marshall, Ilhas Carolinas, Ilhas Marianas e Guam, entre outros.
Estima-se que entre 200 mil a 400 mil mulheres foram vítimas deste sistema em toda a Ásia, sendo cerca de 200 mil chinesas e aproximadamente 160.000 coreanas. Su Zhiliang e Chen Lifei criaram o Centro de Pesquisa de Mulheres de Conforto da Universidade Normal de Xangai, nos anos ‘90. Em entrevista à mídia sul-coreana, KBS, Su estimou que cerca de 100 mil mulheres coreanas foram levadas à força para “postos de conforto” militares japoneses na China.
Estratégia dos “Três Tudo”
“Matar tudo”, “queimar tudo” e “saquear tudo”, foi a estratégia implementada pelo Japão na China como estratégia à crescente resistência de guerrilha comunista. O objetivo de “matar tudo” visava principalmente o Partido Comunista da China (PCCh), já que o Partido ganhava cada vez mais apoio da população rural.
A estratégia era terrorista, para causar temor na população chinesa e dissuadir sua participação na resistência. O saqueio era para manter as tropas mas também para provocar a fome e escassez debilitando o povo.
A estratégia teve o resultado oposto, fortalecendo o apoio do povo aos comunistas.
O termo dos “Três Tudo” é utilizado pela China com base em investigações posteriores à guerra de resistência.
Parte das informações foi obtida com ex-soldados japoneses no Centro de Gestão de Criminosos de Guerra de Fushun, na China.
Em 1957, os relatos foram publicados no livro “Os Três Tudo: Confissões Japonesas de Crimes de Guerra na China, que foi rapidamente tirado de circulação no Japão após os editores receberem ameaças de morte de militaristas japoneses.
O livro voltou a ser editado por Haruo Kanki em 1979.
Crimes de guerra biológicos
A China continua encontrando evidências dos crimes de guerra biológica cometidos pelo Japão. As atrocidades incluiram experimentos em seres humanos com patógenos, vivisecção (cirurgias com pessoas vivas, sem anestesia nestes casos).
Em maio de 2023, foi descoberto um bunker perto da cidade de Anda, no nordeste da China, considerado o maior local de testes da infame Unidade 731.
Na semana passada, 19 de agosto, o Serviço Federal de Segurança (FSB) russo desclassificou documentos que revelam práticas da Unidade 731, na região da Manchúria, na China. Essa é uma das unidades para desenvolvimento e teste de armas biológicas e químicas. Os documentos mostraram que o exército japonês utilizou projéteis de canhão com bactérias de peste, antrax e cólera.
Essas e outras doenças eram injetadas em prisioneiros de guerra chineses, soviéticos e coreanos. Em alguns casos, a vivisecção era feita para estudar a reação do corpo humano aos patógenos injetados.
Outras práticas incluíam congelamento de membros de pessoas vivas e testes em laboratório com armas químicas como gás mostarda e lacrimongênio.
Yoshimura Hisato, era um dos pesquisadores, líder do esquadrão de congelamento. Ele estudava hipotermia e congelamento.
A Unidade 731 e outras, todas secretas, causaram centenas de milhares de mortes.
Após a derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial – chamada de Guerra Mundial Anti-fascista–, os EUA concederam imunidade total aos criminosos de guerra da Unidade 731, incluindo seu comandante Ishii Shirō. Em troca, os EUA receberam todos os dados das pesquisas desumanas feitas na Unidade 731.
Yoshimura Hisato levou uma vida normal no Japão, e inclusive foi condecorado em 1978 com a Ordem do Sol Nascente, por suas realizações no campo da “adaptação biológica”.
O não reconhecimento oficial do Japão de seus crimes de guerra
Aguns pedidos de desculpas feitos por primeiros-ministros japoneses, especialmente nas datas comemorativas do fim da Segunda Guerra Mundial. Mas ainda não há um pedido de desculpas e reconhecimento oficial do Estado japonês pelos crimes de guerra cometidos.
Os livros de história utilizados para o ensino oficial no Japão não reconhecem, ocultam e/ou minimizam informação sobre os crimes cometidos pelo exército japonês nos países que invadiu.
Esse aspecto é muito criticado nos principais países vítimas do imperialismo japonês: a Coreia e a China, que até hoje exigem pedidos de desculpas oficiais e reparações às vítimas.
A história do expansionismo japonês
Já na Segunda Guerra Mundial, o Japão promoveu o conceito de “Esfera de Co-Prosperidade do Grande Leste Asiático”. Isso foi apresentado de certa forma como uma reação à presença de potências imperialistas ocidentais na Ásia.
A brutalidade, a exploração econômica e a imposição da cultura e da língua japonesa, como no caso do período colonial do Japão na Coreia, de 1910 a 1945, deixaram evidente que a “esfera” não era sobre co-prosperidade, mas sim sobre dominação.
A pretensão imperialista do Japão tem antecedentes desde o século 17, com a invasão de Ryukyu, uma cadeia de ilhas que ocupava quase os mesmos territórios da atual prefeitura de Okinawa. O Reino de Ryukyu foi invadido em 1609 e finalmente anexado pelo Japão dois séculos depois, em 1879.
Anteriormente, o Japão havia feito a primeira invasão ao território chinês, em 1874, a Taiwan, e acabou anexando a ilha em 1895, após impôr a derrota à dinastia Qing na Primeira Guerra Sino-Japonesa (1894-1895). Taiwan se tornou a primeira colônia japonesa de ultramar, e só deixaria de sê-lo em 1945 com sua derrota na Segunda Guerra Mundial.
A escalada no Século 20
A China denomina oficialmente as invasões japonesas no século 20, de Guerra de Resistência do Povo Chinês contra a Agressão Japonesa, que foi de 1931 a 1945.
Em 1931, uma explosão ocorre em uma ferrovia em Mukden (atual Shenyang), a capital da Manchúria, no nordeste da China. A Ferrovia do Sul da Manchúria se encontrava sob administração do Japão, algo que o país conquistara ao vencer a Guerra Russo-Japonesa (1904-1905).
Por sua vez, a ferrovia pertencia originalmente ao Império Russo no território chinês como parte de um acordo com a enfraquecida dinastia Qing que fez uma aliança de defesa com os russos após a derrota da Primeira Guerra Sino-Japonesa.
A explosão foi uma operação de falsa bandeira do Japão que, após acusar soldados chineses da explosão, enviou de 10 a 15 mil soldados do Exército de Kwantung (o exército japonês na Manchúria) à Mukden.
O Japão utilizou o incidente como desculpa para ocupar toda a Manchúria. Em seguida, em 1932, proclamou a criação de um suposto Estado independente, o Manchukuo, e designou Pu Yi, o último imperador da China, como seu governante.
A declaração da independência desse novo Estado foi uma estratégia do Japão para não gerar condenação internacional. Na realidade Manchukuo foi um Estado fantoche sob controle total do Japão.
O futuro
Ao comentar sobre os documentos desclassificados do Serviço Federal de Segurança, a porta-voz do Ministério de Relações Exteriores, Mao Ning, afirmou: “Somente encarando a história de frente podemos conquistar respeito; somente aprendendo com a história podemos avançar rumo ao futuro; e somente relembrando o passado podemos evitar recaídas”.
Ela disse que a China insta o Japão a “refletir profundamente sobre sua história de agressão, a respeitar verdadeiramente os sentimentos do povo da China e de outras nações vitimizadas, a romper completamente os laços com o militarismo e a tomar medidas concretas para eliminar seu legado, abstendo-se de repetir os erros da história”.
O Japão até o momento não condena sua pretensão imperialista. Ao mesmo tempo, se tornou um dos principais aliados dos Estados Unidos na Ásia, abraçando cada vez mais projetos de militarização como o aumento significativo do seu gasto militar e exercícios militares no Mar do Sul da China.
Os gastos militares anuais do Japão ultrapassaram ¥ 6 trilhões (mais de R$ 221 bilhões) pela primeira vez em 2023, e dispararam para mais de ¥ 8 trilhões (mais de R$ 295 bilhões) no ano seguinte. Os dados são do Instituto Internacional de Pesquisa da Paz de Estocolmo.
Em agosto do ano passado, o Japão realizou, pela primeira vez, exercícios militares conjuntos com as Filipinas, no Mar do Sul da China, após um pacto que os dois países assinaram que permite o treino e operação militar nos territórios um do outro.