O que hoje é um parque infantil já foi um cemitério de pessoas negras. E uma das principais avenidas da cidade foi construída sobre uma antiga igreja onde o povo negro praticava sua fé. Esses são alguns dos espaços de memória destruídos em Cabo Verde, no Sul de Minas Gerais, que foram redescobertos.
A pesquisa de mestrado de Luís Eduardo de Oliveira teve como ponto de partida um livro de registros da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Cabo Verde. Nele, o historiador encontrou evidências da existência da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e o cemitério anexo, que existiam no centro da cidade. Ambos foram demolidos. No lugar, funciona um parque infantil hoje.
Durante a pesquisa desenvolvida na Universidade Federal de Alfenas (Unifal), Luís Eduardo também identificou o local onde ficava a sede da Irmandade, espaço de organização comunitária e religiosa negra. Atualmente, o prédio abriga uma agência do banco agrário.
:: Receba notícias de Minas Gerais no seu Whatsapp. Clique aqui ::
Além disso, em conversas com moradores antigos, o pesquisador soube da destruição de outra igreja que também era frequentada pela comunidade negra. O templo foi demolido para dar lugar à construção de uma avenida: mais um marco da urbanização que silenciou a presença negra na formação do município.
“Eu tenho a obrigação de levar esses nomes, de levar essa história junto com a minha pesquisa e transformar isso num debate acessível a todos: crianças, adolescentes, adultos. Porque esse debate nunca foi feito”, afirma o historiador Luís Eduardo de Oliveira.
Conforme o pesquisador, o apagamento tem como fundamento o racismo e pode ser chamado de “memoricídio”, ou seja, a morte da memória. Outro conceito trabalhado pelo historiador é o de “institucionalização do esquecimento”, que significa fazer com que essa morte seja esquecida.
Livro reúne história e propõe debate decolonial
Os resultados da pesquisa de Luís Eduardo de Oliveira foram reunidos no livro Ancestralidade e Memória: A construção da cidade de Cabo Verde nas dimensões nativas e quilombolas, que foi lançado na sexta-feira (22).
Além das produções de Luis Eduardo de Oliveira, a publicação apresenta estudos da antropóloga Lidia Torres. Com uma trajetória de pesquisas em espaços rurais do município pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Lidia contribui para a publicação com informações sobre a formação da cidade, que escancara a desigualdade social do povo preto causada pela Lei de Terras. Para ela, o apagamento de espaços históricos negros exige medidas de reparação.
“Passado, presente e futuro. Precisa ter uma demarcação e um reconhecimento do que foram esses espaços que foram destruídos. Passaram por cima deles e é preciso haver alguma forma de reparação histórica, social e política dessas memórias”, afirma.
Ela defende que, no mínimo, haja sinalização simbólica nos locais apagados — como placas, monumentos ou intervenções visuais — e incentivos a novas pesquisas sobre a história negra local.
Cinema e educação: história viva nas salas de aula
As pesquisas não ficaram apenas no campo acadêmico. Foi transformada em duas produções audiovisuais, que buscam ampliar o acesso à história de presenças não-brancas em Cabo Verde.
Os documentários “Nas contas do Rosário: Espaços de memória, fé e (r)existência negra em Cabo Verde” e “Quando bate a alfaia Caiapó: Presença e resistência negra e indígena em Cabo Verde, Minas Gerais” narram a luta por memória e reconhecimento a partir de vozes silenciadas pela história considerada oficial.
Pensados como ferramentas pedagógicas, os filmes foram desenvolvidos para serem exibidos em escolas e espaços educativos. Eles estão disponíveis em versões curtas e também em um corte único de cerca de uma hora, que pode ser assistido no YouTube.