O governo federal sancionou, com vetos, o Projeto de Lei 2159/2021, conhecido como PL da devastação. O anúncio veio no último dia 8 e, de acordo com o Planalto, o corte de 63 artigos, de um total de 400, visa garantir “proteção ambiental e segurança jurídica”. Especialistas apontam que, embora os vetos tenham assegurado pontos importantes, ainda há grandes lacunas que podem impactar especialmente Minas Gerais.
“Apesar de extremamente desastroso esse PL, os vetos do presidente Lula são uma ponta de esperança”, destaca a ambientalista Juliana Minardi, fundadora do Instituto Árvore.
Os vetos foram, de acordo com o governo, organizados em 4 eixos principais: assegurar a integridade do processo de licenciamento; resguardar os direitos de povos indígenas e comunidades quilombolas; oferecer segurança jurídica a investidores e adotar inovações para acelerar o licenciamento, sem reduzir sua qualidade.
Para a pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)Esther Guimarães, militante do Movimento Pela Soberania Popular na Mineração (MAM), o resultado positivo pode ser considerado fruto da massiva mobilização de movimentos populares, ambientalistas e de comunidades tradicionais. Porém, a manutenção da qualidade dos licenciamentos frente a aceleração dos processos é o ponto mais sensível no texto final do PL, uma vez que
“É muito difícil acelerar os processos participativos e os complexos estudos técnicos sobre efeitos diretos e indiretos dos empreendimentos, sem que essa aceleração sacrifique a qualidade dos procedimentos. Disso dependem elementos que não estão cobertos pela nova PL, como o fortalecimento dos órgãos ambientais licenciadores e fiscalizadores, além dos conselhos de meio ambiente” explicou Guimarães.
Ao mesmo tempo, foi proposto pelo Executivo uma medida provisória de efeito imediato que antecipa a eficácia da Licença Ambiental Especial (LAE), um dos pontos mais questionados por especialistas. Sugerido por Davi Alcolumbre (União Brasil -AP), presidente do Senado, a mudança implementada pela MP pode abrir lacunas para acelerar projetos de exploração de petróleo em regiões como a bacia da Foz do Amazonas.
Aprovado pelo Congresso Nacional em julho deste ano, o PL chegou ao executivo com mudanças nas diretrizes do licenciamento ambiental no Brasil, flexibilizando normas e permitindo que diversas atividades com graves impactos ambientais ficassem isentas de licença. Vale lembrar, que a proposta inicial, de 2004, do deputado Luciano Zica (PT) visava organizar o licenciamento, atribuindo responsabilidades entre órgãos e conselhos, de forma a fortalecer mecanismos de preservação ambiental. Segundo a militante do MAM, esse propósito foi distorcido ao longo da tramitação, especialmente no governo Bolsonaro.
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“Entre 2018 e 2022, o congresso se mobilizou fortemente em torno do PL e introduziu dispositivos que desestruturariam o licenciamento, como a própria Licença por Adesão de Compromisso (LAC). Mas, naquela época, a atenção internacional e o contexto de pandemia detiveram a votação do PL, e o executivo de Bolsonaro optou por degradar o ordenamento ambiental brasileiro através da fragilização de órgãos de fiscalização e licenciamento “, relembra ela.
Minardi considera que o formato com o qual a ‘mãe das boiadas’ chegou para sanção presidencial demonstra claramente que a maioria dos parlamentares brasileiros não levam a sério os riscos e alertas climáticos, o que deixa ambientalistas e a população extremamente preocupados.
“É revoltante ver que o Congresso, nos últimos anos, tem votado de forma alinhada aos interesses econômicos de certos exploradores, em detrimento da saúde e da sobrevivência da própria população. Agem ignorando os alertas climáticos e as catástrofes recorrentes que estamos vivendo em nosso país, como as enchentes e secas extremas, que tiram vidas diversas, afetam a qualidade de vida e a produção de alimentos”, afirma a fundadora do Instituto Árvore.
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Entenda os vetos
Entre os vetos do presidente ao texto está a limitação da Licença por Adesão e Compromisso (LAC) – uma modalidade de licenciamento por autodeclaração via formulário online – a empreendimentos classificados como de baixo impacto. O governo federal afirma que o veto impede que empreendimentos de risco significativo, como barragens de rejeitos, comuns em todo o estado de Minas, como as que estouraram em Mariana e Brumadinho, sejam submetidos a licenciamento simplificado, sem a devida análise técnica.
Além disso, o texto final aprovado por Lula: preserva padrões nacionais para classificação de projetos; mantém a proteção especial anti-desmatamento da Lei da Mata Atlântica; conserva a exigência de consulta a órgãos de proteção de povos e comunidades tradicionais, gestores de Unidades de Conservação, e a verificação do Cadastro Ambiental Rural; Por fim, assegura a responsabilização de empreendedores por danos ambientais indiretos e de instituições financeiras que financiam atividades poluidoras.
Guimarães entende que foram vetados os dispositivos que atacavam os princípios fundamentais do licenciamento, ligados à regularidade da propriedade de terras, prevenção da grilagem, responsabilização pelo dano ambiental e respeito aos direitos territoriais. Por outro lado, Juliana Minardi reforça que, em se tratando de meio ambiente, todo o cuidado e vigília constantes são fundamentais, já que, para ela “infelizmente o imediatismo do lucro a qualquer custo, inclusive sobre a vida de milhares de pessoas e animais, ainda é o que mais se vê na gestão pública e na política”.
Neste sentido, as ambientalistas denunciam que, apesar da melhora, foram mantidos trechos que prejudicam a preservação ambiental, ao tornar menos rígidas algumas ferramentas e instituir novas. É o caso da própria LAE, regime no qual os órgãos ambientais têm até um ano para realizar as três fases do licenciamento ambiental, em projetos considerados estratégicos para o país, definidos em reunião bianual de um conselho de governo.
“Isso lança uma série de dúvidas a respeito da abertura deste conselho à escuta dos povos e comunidades atingidas, sobre o fortalecimento técnico dos órgãos ambientais para conduzir um processo mais célere sem perda de qualidade, e ainda sobre a criação de uma instância paralela de licenciamento, menos aberta à contestação popular e mais vulnerável ao lobby empresarial” justifica a militante do MAM.
Outras permanências, que facilitariam a exploração desregrada são: a redução da competência da União sobre o Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama); a diminuição de exigências no licenciamento e a renovação automática de licenças de médio impacto. Também foi mantida a dispensa de licenciamento para obras de manutenção e melhoria de infraestrutura já existente, o que, para especialistas, pode validar práticas irregulares e danos passados.
Como isso pode impactar Minas Gerais
Dessa forma, ao sancionar a nova Lei com os 63 vetos, se preservou alguns mecanismos que podem favorecer projetos de alto impacto, cedendo a setores econômicos, como o agronegócio e a mineração, que fazem pressão por menos regras. Em Minas Gerais, segundo dados da Fundação João Pinheiro (FJP), o agronegócio atingiu, em 2024, o recorde de representar 22,2% da economia do estado. Enquanto isso, a mineração foi responsável por quase 38% das exportações totais.
Dada a concentração das atividades econômicas do estado nesses setores, Minas fica em grande parte dependente das regras de licenciamento ambiental para proteção de sua biodiversidade. O que, para Juliana é muito dificultado pelo atual governo estadual, que vem precarizando extremamente o trabalho da secretaria de Meio Ambiente, priorizando a mineração e dificultando a participação da população na gestão ambiental.
Na mesma linha, Guimarães destaca que Minas Gerais tem sido um laboratório para a dilapidação dos procedimentos de licenciamento ambiental no Brasil. Aqui nasceu, em 2016, a fragmentação dos procedimentos e a modalidade monofásica de licenciamento e a recém aprovada dispensa de licenciamento ambiental para projetos agropecuários de até 1000 hectares.
“Por isso, não é de assustar que o relator do PL da Devastação tenha sido um deputado mineiro, Zé Vitor (PL), que inclusive já declarou ter a intenção de derrubar alguns vetos da presidência”, reforça.
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Para ela, o projeto final atende parcialmente à demanda do agronegócio e mineração, setores que se beneficiam especialmente da criação da LAE.
“O conteúdo remanescente da lei, após os vetos, reflete a combinação de forças opostas em um governo que busca equilibrar a necessidade de garantir as rendas do extrativismo diante de restrições orçamentárias, às pressões externas em ano de COP em Belém, os embates diretos com o legislativo, a mobilização da sociedade civil em defesa da natureza e um compromisso genuíno da pasta de meio-ambiente do governo Lula com a conservação ambiental” Explica a militante.
Minerais críticos e licenciamento estratégico
Outra preocupação específica do estado são as grandes jazidas de lítio, nióbio e terras raras, minerais críticos que têm crescente importância geopolítica e podem ser enquadrados na Licença Ambiental Especial. Simultaneamente a isso, vem avançando no congresso uma nova Política Nacional de Minerais Críticos e Estratégicos, proposta pelo deputado federal Zé Silva (Solidariedade) cuja aprovação vai possivelmente afetar a definição dos projetos considerados prioritários. Desde 2021, existe em aplicação o licenciamento prioritário para minerais enquadrados pela Política Pró-minerais estratégicos.
“Em Minas, esse dispositivo tem atendido projetos polêmicos, como o Bloco 8 da empresa Sulamericana de Metais, que prevê a construção de uma das maiores barragens de rejeito do Brasil e, se aprovado, irá fazer uso intensivo de água em pleno semiárido. Isso pode nos dar um sinal dos efeitos que a LAE pode ter para nosso estado, caso siga o mesmo modelo da política Pró-minerais Estratégicos”, Exemplifica Esther Guimarães, militante do Movimento Pela Soberania Popular na Mineração (MAM).
Somada a uma legislação que já vem sendo flexibilizada e aos ataques que têm sido feitos ao direito de participação da sociedade civil no Conselho Estadual de Meio Ambiente, essa legislação coloca os especialistas em estado de alerta para novas violações.
Por outro lado, Guimarães reforça que alguns vetos têm importância especial para Minas Gerais, como a manutenção da proteção anti desmatamento da Lei da Mata Atlântica, uma vez que somos recordistas na supressão desse bioma. Outro exemplo é a manutenção da consulta a órgãos protetores de comunidades tradicionais, já que nosso estado é o que tem mais comunidades quilombolas no Brasil.
Próximos passos
Os vetos ainda serão analisados pelo congresso mas, com o clima de tensão entre executivo e legislativo, ainda há incerteza sobre sua aceitação total. O relator do PL veio a público criticar a supressão de dispositivos que eliminavam a verificação do Cadastro Ambiental Rural, a consulta a órgãos de proteção a comunidades indígenas e a proteção especial contra o desmatamento da Mata Atlântica, com a justificativa de que a burocracia torna o processo das licenças demorado. Porém, Esther relembra que
“O fortalecimento técnico dos órgãos de licenciamento e fiscalização, que poderiam melhorar os prazos do licenciamento sem comprometer sua qualidade, não foi sequer mencionado pela ofensiva anti-ambiental do congresso. Isso mostra uma indisposição de parte significativa do setor agro mineral com relação a qualquer tipo de responsabilização”, concluí ela.