A insegurança alimentar é uma realidade brutal para milhares de famílias no Distrito Federal. Dados alarmantes do Instituto de Pesquisa e Estatística do Distrito Federal (IPE-DF) revelam que 21% dos lares da capital enfrentam algum nível de insegurança alimentar, com o cenário ainda mais crítico em comunidades vulneráveis. Dentro da Central das Cooperativas de Catadores de Materiais Recicláveis do Distrito Federal e Entorno (Centcoop-DF), um inquérito recente mostrou um quadro dramático: mais de 80% dos cooperados vivem em situação de insegurança alimentar, sendo uma parcela considerável em estágio grave.
O inquérito de insegurança alimentar conduzido pela Centcoop foi aplicado em janeiro de 2025, entrevistando 77 cooperados, 15% da população da cooperativa. O levantamento revelou a profundidade do problema, os resultados indicaram que 85,6% dos entrevistados se sentiram preocupados com a possibilidade de os alimentos em casa acabarem antes de terem dinheiro para comprar mais nos últimos três meses. Para 81,8% deles, os alimentos de fato acabaram nos últimos três meses, enquanto 77,9% dos familiares tiveram de consumir apenas o que ainda havia em casa por falta de dinheiro.
A situação é ainda mais grave, com 46,8% tendo deixado de fazer alguma refeição por falta de recursos e 63,6% comendo menos do que deveriam. A pesquisa também apontou que a insegurança alimentar afeta as crianças e adolescentes, com 45,5% dos cooperados relatando que eles não tiveram uma alimentação saudável e variada por falta de dinheiro, 45,9% relataram que a criança ou adolescente da sua família comeu menos do que devia por não haver dinheiro para comprar alimentos, 36,6% deixou de fazer alguma refeição por não haver dinheiro suficiente para comprar alimentos.
Simone Gomes, fundadora do Banquetaço e do Instituto Comida para Todos explica que o objetivo de aplicar a Escala Brasileira de insegurança alimentar (Ebia) com os catadores foi de mapear a insegurança alimentar no segmento. A partir disso, “o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) conseguiram argumentar internamente e dispor as cestas em caráter emergencial para a cozinha”, esclarece Gomes.
“Inclusive conseguimos alterar uma portaria dentro do MDS, porque o levantamento serviu de justificativa para que fossem entregues cestas básicas à Centcoop, de acordo com o nível de insegurança alimentar identificado. Foi justamente com esses resultados que argumentamos junto ao MDS: “olha, o grau de insegurança alimentar aqui é alto”.
O inquérito foi encaminhado ao MDS e chegou até a secretaria responsável pelo combate à fome e à insegurança alimentar. A partir disso, foi autorizada a entrega emergencial de 200 cestas básicas à cooperativa, inicialmente por seis meses, depois prorrogados por igual período. Segundo Simone Gomes, a iniciativa já está na terceira etapa de distribuição.
Ela ainda destaca que a pesquisa realizada pela Centccop-DF abre caminho para uma expansão do levantamento sobre a insegurança alimentar em outras cooperativas de catadores. “Na verdade, a nossa vontade de expansão era fazer outras pesquisas e avaliar melhor a insegurança alimentar das cooperativas, porque ela não condiz com a insegurança alimentar nacional da população brasileira”, afirma.
Idealizada em 2002, formalizada em 2006, a Centcoop surgiu com o objetivo de fortalecer os catadores por meio de cooperativismo e promover melhores condições e infraestrutura de trabalho. A organização atua como entidade de segundo grau, reunindo 21 cooperativas com mais de mil cooperados, e representa cerca de 2.790 catadores e catadoras em diversas regiões do DF e entorno, como Brasília, Ceilândia, Santa Maria e municípios de Goiás.
Desafio da cozinha solidária

Foi a partir dessa dura realidade que nasceu a ideia da Cozinha Solidária Diogo Sant’Ana. Uma iniciativa que ganhou força após um evento de Natal com catadores, organizado pela ativista Simone Gomes. “A idealização veio quando fui fazer o segundo Natal do Lula com os catadores em Brasília e o pessoal da Ancat [Associação Nacional dos Catadores], pediu para eu doar algum material para a cozinha”, conta Gomes.
Inaugurada em dezembro de 2024, a cozinha ganhou o nome Diogo Sant’Ana, advogado militante da causa dos catadores de materiais recicláveis, que teve o trabalho reconhecido nos governos Lula e Dilma.
Inicialmente, a cozinha chegou a servir 420 refeições por dia. “Mas por falta de recursos, a proteína, que é muito cara, a gente não conseguiu manter”, explica Lúcia Fernandes do Nascimento, presidenta da Centcoop. A cozinha chegou a fechar em dezembro de 2024 , após inauguração e reabrir em janeiro deste ano, tendo que reduzir drasticamente a quantidade de refeições. Atualmente, a cozinha oferece 150 refeições aos catadores, mas tem capacidade de atender até 500 catadores.
A integrante do corpo administrativo da Centcoop, Rebecca Mello, lamenta o subaproveitamento do espaço: “A cozinha está aberta, porém, devido aos custos, não conseguimos ultrapassar o fornecimento das 150 refeições diárias. Nosso objetivo é alcançar a capacidade máxima de atendimento de 500 pessoas.” Segundo a Centcoop, o valor da refeição sai por R$ 4,00 para os catadores, que é subsidiada pela própria cooperativa. Para o público externo a refeição custa R$ 10,00, com pagamento via Pix, ou R$ 15,00 no cartão.
Batalha por recursos e a busca por soluções

A Cozinha Solidária tem buscado alternativas para se sustentar. Além das cestas básicas do MDS e o apoio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Recentemente, uma doação de um total de 500 kg de proteína da empresas do ramo frigorifico, durante 12 meses, trará um alívio momentâneo. Segundo a Centcoop, a doação começa a chegar na primeira semana de setembro.
No entanto, a luta por recursos é diária e incerta. Idealizadora do projeto, Gomes menciona a dificuldade de acesso a programas governamentais e a dependência de doações. “A gente ainda não está inscrito enquanto cozinha solidária no governo federal, porque está para sair o edital agora. Essa cozinha, se chegar a entrar, vai ser só no ano que vem,” explica.
Para Simone Gomes a dificuldade de financiamento para cozinhas solidárias não atinge somente esta cooperativa, o problema é nacional. “A política pública hoje ela não atende tudo que uma cozinha solidária precisa. O valor de R$ 2,80 de repasse, mais o Programa de Aquisição de Alimentos, não garante uma alimentação integral,” afirma. “As cozinhas todas solidárias que a gente conhece tem vivido uma escassez e tem captado recursos de outras formas”, conclui.
Doações
Visando a continuidade da cozinha solidária, a Centcoop iniciou uma campanha de arrecadação. As doações podem ser encaminhadas por meio do pix da central: 61 998323933