A recente ofensiva do governo Trump contra o Brasil, agora incluindo a suspensão de vistos de autoridades do Ministério da Saúde, evidencia até onde pode chegar o jogo político quando a saúde pública entra em disputa. Mozart Júlio Tabosa Sales, secretário de Atenção Especializada à Saúde, e Alberto Kleiman, um dos coordenadores brasileiros da COP30 e ex-dirigente da OPAS, tiveram vistos cancelados pelo governo norte-americano.
A manobra é mais um capítulo do tarifaço e da pressão que Washington tenta impor sobre o Brasil, desta vez misturando sanções políticas e tentativas de deslegitimar políticas públicas fundamentais como o Sistema Único de Saúde (SUS). Sua justificativa reproduz discursos usados no passado por setores que atacaram o programa Mais Médicos e que, mais tarde, estiveram na linha de frente do bolsonarismo, difundindo cloroquina, negando vacinas e desmontando o sistema de saúde. Não por acaso, o ministro Alexandre Padilha reagiu dizendo que “saúde e soberania não se negociam”.
Ameaças políticas e o acesso a medicamentos
A ofensiva de Trump não se limita a ataques diplomáticos. As sanções comerciais e os ataques verbais têm motivações políticas e deixam claro que não há espaço para negociação entre os governos. Nesse cenário, o Brasil tem uma carta na manga: a Lei da Reciprocidade Econômica (Lei nº 15.122/2025), que permite a adoção de contramedidas frente a práticas unilaterais e injustas, inclusive no campo da propriedade intelectual. Suspender patentes de medicamentos de empresas norte-americanas é uma resposta justa,não se trata apenas de uma medida de defesa econômica e de soberania, mas também de justiça social em favor do SUS e do direito à saúde.
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O exemplo mais urgente é o do lenacapavir — um injetável semestral de prevenção ao HIV, cujo preço nos EUA ultrapassa 27 mil dólares por paciente ao ano, mas que poderia ser produzido por cerca de 30 dólares na versão genérica, segundo estimativas independentes. Em um país que enfrenta mais de 40 mil novas infecções anuais por HIV, especialmente entre jovens, é uma medida medida humanitária. Ao suspender patentes como a do lenacapavir, o Brasil afirmaria seu compromisso com a vida, a saúde pública e os direitos humanos, respondendo aos ataques sistemáticos de Trump não com submissão, mas com coragem e solidariedade.
A história desmente a Big Pharma
Qual o risco de suspender as patentes? Não é a primeira vez que o Brasil enfrenta esse dilema. Em 2007, o governo Lula decretou a licença compulsória do efavirenz, um dos principais antirretrovirais usados no tratamento do HIV/AIDS. O discurso do presidente foi categórico: a saúde pública não poderia ser refém de interesses comerciais. O resultado? O Brasil economizou milhões, ampliou o acesso aos medicamentos e nenhuma das ameaças de retaliações comerciais e a inviabilização de novos negócios se concretizou. Nem houve fuga de investimentos, nem colapso da inovação.
A experiência brasileira mostra que enfrentar monopólios é não apenas possível, mas necessário. E que as campanhas de medo promovidas pelas grandes corporações servem mais para proteger lucros bilionários do que para garantir qualquer avanço científico.
Quais caminhos o Brasil tem hoje
O Brasil não precisa da autorização dos EUA para suspender patentes. Além da licença compulsória — que mantém o pagamento de royalties —, existe a possibilidade de suspensão total da propriedade intelectual, prevista na Lei da Reciprocidade Econômica, sem pagamento aos detentores de patentes. Essa medida, política e legítima, permitiria ao país utilizar tecnologias essenciais sem depender da boa vontade da Big Pharma.
Com um mapeamento estratégico, é possível identificar medicamentos já disponíveis em forma genérica no exterior e, assim, garantir abastecimento imediato via importação, ao mesmo tempo em que se estrutura a produção nacional. Para produtos mais complexos, como biológicos, o prazo pode variar, mas isso não impede a adoção imediata da medida para aliviar custos do SUS e salvar vidas.
Saúde, soberania e democracia
A carta aberta enviada recentemente por entidades da sociedade civil ao presidente Lula é clara: diante das sanções de Trump e da tentativa de interferência direta na política brasileira, a resposta está na defesa da soberania e no fortalecimento da democracia. Isso significa usar sem medo os mecanismos legais já disponíveis para quebrar patentes e garantir medicamentos acessíveis à população.
Trump pode cancelar vistos, impor tarifas e até mesmo pressionar em organismos internacionais. Mas a lição de 2007 permanece atual: quando o Brasil coloca a vida em primeiro lugar, nem a Big Pharma nem a Casa Branca conseguem deter.
*Erly Guedes é jornalista, mestre em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e assistente de comunicação do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (REBRIP).
**Susana van der Ploeg é advogada, mestre em Direito e Inovação pela UFJF, doutoranda em Direito e Atividades Econômicas pela UERJ, coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (REBRIP).
***Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.