O número de pessoas que vivem em situação de rua no Brasil intensifica-se a cada dia. Segundo levantamento divulgado no início do ano pelo Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua (OBPopRua/Polos), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com base no Cadastro Único, o número de pessoas vivendo em situação de rua em todo o Brasil aumentou cerca de 25% em um ano. Em dezembro de 2023 havia 261.653 pessoas nesta situação, mas no final de 2024 elas já eram 327.925 — um número 14 vezes superior ao registrado em 2013.
O crescimento desacelerou, mas se mantém: até maio deste ano, já eram 345.542 as pessoas vivendo nessas condições no Brasil, 62% delas na região Sudeste. De acordo com o estudo, São Paulo é a capital com a maior concentração, com 98.639 pessoas em situação de rua.
Aliada ao fator econômico, a ausência de políticas públicas arrasta essas pessoas pelos grandes centros urbanos e tenta esconder das estatísticas não apenas suas existências, como também suas mortes. Um levantamento exclusivo da Ponte mostra que, das 27 capitais, somente 6 delas têm dados sobre essas mortes — todas incluindo registros violentos.Os dados obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI) são referentes ao período de 2019 a 2024 e os pedidos foram solicitados em fevereiro. Ainda assim, cinco prefeituras não responderam aos questionamentos, duas negaram fornecer as informações e uma estava com a página de consulta indisponível até a publicação desta reportagem.
Pouca transparência e dados incompletos
A Ponte identificou descomprometimento da maioria das prefeituras com o atendimento à essa população e, mais ainda, com a coleta de informações para mapear o perfil e os motivos que levaram essas pessoas às ruas. Até o momento, não há trabalhos efetivos das gestões para reduzir o índice de pessoas nas ruas ou para conter o preconceito e os ataques violentos contra elas, reforçando a desumanização e vulnerabilidade de quem vive à margem das políticas públicas.
É importante destacar também o claro descumprimento de medidas de transparência por parte das prefeituras, seja negando o envio de dados à população para evitar mostrar suas ausências de atuação, ou ignorando às solicitações pelos canais disponíveis. O levantamento da Ponte evidencia que, além da saúde física, esse grupo também sofre por questões profundas de saúde mental e o resultado deixa claro que o enfrentamento à situação de rua ainda não é uma prioridade para as principais cidades brasileiras.
De acordo com Caio Moraes Reis, doutorando em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) que estuda a morte de pessoas em situação de rua na capital paulista, a ausência de dados referentes a esse grupo populacional e as respostas negativas são resultado da falta de comprometimento dos agentes públicos com a produção dessas estatísticas.
“O que não é visto, não existe para o poder público. A falta desses dados implica exatamente no vazio de políticas públicas e na inexistência de ações mais efetivas. É um cenário global, é muito difícil encontrar países, cidades, que se esforçam para contabilizar não só a população em situação de rua de um modo geral mas, especificamente, as mortes delas”.
Caio, que também é pesquisador do Centro Global de Métodos Espaciais para Sustentabilidade Urbana da Universidade Técnica de Berlim, argumenta ainda que essas mortes refletem uma falha do Estado na proteção dessa parcela da população, o que também viola os direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal de 1998. “Qual governo vai produzir um dado que atesta a sua incompetência, mesmo que apenas em uma parcela da sua atuação? Em contrapartida, o esforço dos governos, das gestões, é sempre mostrar aquilo de bom que eles fazem, até pelos incentivos institucionais que existem para isso e por uma questão de transparência.”

Falta de moradia, sono e higiene
Sem o apoio do poder público, a população em situação de rua conta com a ajuda de projetos importantes, dedicados à promoção da saúde e do bem-estar. A professora doutora Jaqueline Lemos de Oliveira faz parte de uma dessas iniciativas, junto com outros profissionais ela desenvolve pesquisas na área da saúde mental a partir dos marcadores sociais da desigualdade, consumo de álcool e outras drogas, no departamento de Enfermagem Materno-infantil e Psiquiátrica da USP.
Segundo a docente, o projeto idealizado por ela e pelas professoras Maria Fernanda Terra e Sheila Ferreira Lachtim ajuda a identificar os fatores de violência contra a população em situação de rua e os impactos disso na saúde mental desse grupo.
“As necessidades surgem da falta de condições básicas de saúde, providas por uma moradia digna. A falta da qualidade de sono, alimentação e higiene são o básico e afetam de forma significativa a qualidade de vida. São relatos de sofrimento mental intensos, além da problemática do consumo de álcool e outras substâncias psicoativas que aumentam as consequências negativas à saúde”, afirma.
A especialista reforça ainda a necessidade de pensar a saúde mental além das unidades de atendimento específicas para essa abordagem, já que elas não dão conta de dar suporte ao crescimento da população em situação de rua que precisa de acolhimento. Para Jaqueline, o enfrentamento do problema só é possível com o trabalho em rede dos equipamentos da assistência, educação, cultura e seguridade social, para garantir o respeito aos direitos humanos.
“Algumas pessoas enfrentam dificuldades para dormir ou se adaptar ao novo ambiente após saírem da situação de rua. Isso está ligado não apenas à mudança física de local, mas à complexidade do processo de reinserção social. Não é somente a ausência de moradia, envolve uma série de rupturas, como vínculos familiares e afetivos fragilizados, exclusão econômica e sofrimento psíquico”, diz Jaqueline. Das 6 cidades que atenderam às solicitações da Ponte, 3 delas registraram mortes de pessoas em situação de rua por suicídio, com uma morte cada.
Como resultado dos trabalhos com essa população, a professora explica que é comum observar estratégias adotadas pelas pessoas em situação de rua para sobreviver sem moradia, como o estado constante de alerta, o que dificulta a rápida adaptação e o relaxamento, mesmo em um ambiente seguro. Por isso é necessário adotar abordagens de atendimento multiprofissional.
“Ainda existe a solidão, na rua elas costumam estabelecer laços com outros em situação semelhante, criando redes de convivência. A mudança para moradias, especialmente as individuais, pode romper vínculos e gerar sensação de isolamento. Muitos vivenciam traumas, transtornos mentais ou uso abusivo de substâncias, que também interferem na adaptação. Apenas ofertar um lar não é suficiente. É preciso empatia, considerar as subjetividades de cada um, a partir do acolhimento e escuta nos atendimentos.”

Cenário por regiões e capitais
Sudeste: As 4 prefeituras das capitais da região responderam aos pedidos da reportagem, mas nenhuma apresentou os dados solicitados.
Norte: Na região, das sete prefeituras, somente quatro delas responderam aos pedidos protocolados, entre elas Porto Velho (RO), que afirmou não ter os dados solicitados. Belém (PA), Boa Vista (RR) e Macapá (AP) não atenderam às solicitações tanto nos sites oficiais das prefeituras quanto pelo Fala.BR, do Governo Federal.
- Rio Branco (AC): 14 mortes de pessoas em situação de rua nos últimos 6 anos (5 delas por homicídio). A prefeitura não informou o número de mortes por ano.
- Manaus (AM): a prefeitura de Manaus não informou o número exato de vítimas por ano, mas forneceu os dados de quantas pessoas em situação de rua morreram e foram enterradas sem identificação – ao todo foram 903, de 2020 a 2024.
Sobre a causa das mortes, a prefeitura de Manaus contabilizou óbitos por arma de fogo, arma branca e traumatismo cranioencefálico, mas também não especificou a quantidade de pessoas mortas nessas condições. Já o serviço municipal SOS Funeral, registrou 19 enterros de pessoas em situação de rua no período, 4 delas por mortes violentas: arma de fogo (3) e traumatismo (1).
- Palmas (TO): 8 mortes de pessoas em situação de rua nos últimos 6 anos, sem especificar o número de óbitos por ano, a prefeitura informou apenas que entre as causas das mortes estão atropelamento, espancamento e falência múltipla dos órgãos.
Nordeste: Na região, das 9 capitais, somente 6 responderam às solicitações, no entanto, 4 delas afirmaram não ter os dados solicitados: Maceió (AL), Salvador (BA), São Luís (MA) e Recife (PE). Natal (RN) e Teresina (PI) não responderam e Aracaju (SE) negou o pedido de envio das informações [leia a justificativa no fim desta reportagem].
- Fortaleza (CE): 16 mortes de pessoas em situação de rua nos últimos 6 anos, 5 delas de forma violenta, sendo: suicídio (1), homicídios (2), por causa externa violenta ou acidental (2).
- João Pessoa (PB): 17 mortes de pessoas em situação de rua nos últimos 6 anos, 4 delas de forma violenta, sendo: homicídios por arma de fogo (3) e suicídio (1).
Centro-Oeste: Das 4 capitais da região, todas responderam às solicitações de acesso à informação, mas nenhuma delas apresentou os dados solicitados. No caso de Brasília (DF), que não possui uma prefeitura, a Diretoria de Vigilância Epidemiológica (DIVEP) do Distrito Federal informou que a cidade não tem os dados solicitados. A página do site da prefeitura de Cuiabá (MT) para consulta das respostas não estava disponível, a reportagem tentou contato via suporte e por e-mail, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
Sul: Na região Sul, das 3 capitais, todas responderam aos pedidos de informação, no entanto somente uma delas forneceu dados. Curitiba (PR) afirmou que não tem nenhuma das informações solicitadas e Porto Alegre (RS) negou fornecer qualquer informação sobre o assunto (leia a justificativa no fim da reportagem).
- Florianópolis (SC): 57 mortes de pessoas em situação de rua nos últimos 6 anos, 4 delas de forma violenta, sendo: envenenamento (1), suicídio (1), atropelamentos (2).
Mortos não-reclamados
A Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPSR) estabelece a adoção espontânea, ou seja, a participação fica a critério de estados, municípios e Distrito Federal. Atualmente, a contagem do número de pessoas que vivem em situação de rua no Brasil é feita levando em consideração os registros do Cadastro Único, dessa forma não contabiliza as pessoas sem cadastros oficiais nos equipamentos de assistência social.
Segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), até 2022, o Brasil tinha 236.400 pessoas em situação de rua inscritas no Cadastro Único — uma média de uma em cada 1.000 pessoas. Ainda conforme os números do MDHC, em 2023, 5 estados concentraram o maior número de notificações de violência contra a população em situação de rua: São Paulo (23%), Minas Gerais (22%), Bahia (11%), Paraná (7% ) e Rio de Janeiro (4%).
Nenhuma das capitais das respectivas unidades federativas informou os registros de mortes dessa população à reportagem.
A falta de padronização, como uma metodologia de contagem e até a inclusão de um campo para a identificação da situação de rua na declaração de óbito, influenciam na ausência de um banco de dados sobre as mortes. À Ponte, o MDHC informou que a adoção do campo específico nas declarações de óbito foi tema de debate no Grupo de Trabalho Interinstitucional (GTI), instituído pelo Decreto nº 11.818/2023, mas “até o momento, não há definição de cronograma, diretrizes técnicas ou regulamentação que viabilizem a implementação da medida”.

O sociólogo Caio Moraes Reis explica que, muitas vezes, os profissionais da assistência social ou da saúde que acompanham esses indivíduos se responsabilizam pelo reconhecimento dos cadáveres. Os corpos enterrados sem o devido reconhecimento são popularmente chamados de ‘indigentes’. Segundo Reis, os mortos não-reclamados, mesmo os identificados, são destinados às covas públicas e o procedimento não é exclusivo a essa parcela da população.
“Nem toda pessoa em situação de rua é enterrada como ‘indigente’ e nem toda pessoa enterrada como ‘indigente’ está em situação de rua. Não sabemos a magnitude do cruzamento entre esses dois conjuntos por falta de dados sobre essas mortes. Por isso ocorre uma confusão que vem do preconceito histórico, que entende a morte como ‘indigente’ como uma consequência de quem estava em situação de rua”.
Caio destaca ainda que, por medo de serem enterradas sem identificação, muitas pessoas pedem aos assistentes sociais que façam o reconhecimento dos corpos. “É espantoso ver a quantidade de indivíduos com esse trauma. Os enterrados sem identificação passam por um ‘ralo institucional’ e ninguém mais sabe o que aconteceu com eles. É o apagamento da identidade e história dessas pessoas. Elas passam a ocupar um lugar físico sem qualquer referência simbólica a quem elas foram em vida”.
No levantamento feito pela Ponte, Manaus foi a única capital que informou o número de pessoas em situação de rua enterradas sem identificação.
- 2020: 183 pessoas
- 2021: 178 pessoas
- 2022: 165 pessoas
- 2023: 195 pessoas
- 2024: 182 pessoas
“A possibilidade de enterrar alguém como ‘indigente’ está muito atrelada à própria condição de vida que essa pessoa teve. A situação de rua é esse grande cenário de fragilização de relações com as grandes instituições da sociedade”, completa Caio.
Falhas na classificação de cor
O Censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) utiliza 5 termos específicos para coletar informações étnico-raciais da população: preto, amarelo, indígena, branco e pardo. No entanto, o levantamento da reportagem com os dados da prefeitura de Rio Branco (AC), identificou uma pessoa classificada como “moreno” no campo de identificação de cor.
A mestre em relações étnico-raciais do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ), Beatriz Pimentel, diz que ainda falta fundamentação e capacitação de servidores públicos sobre questões ligadas ao tema, especialmente relacionadas às categorias de cor e raça. “A palavra ‘moreno’ dificulta não só a criação de políticas públicas, mas também na articulação e debate sócio-racializado em ambientes educacionais, empresariais e até mesmo nas áreas de saúde”, afirma.
“Ao classificar uma pessoa como ‘morena’ retornamos ao mito da democracia racial, assunto muito mal-resolvido. É uma tentativa de apagamento das dinâmicas comunicacionais da racialidade no Brasil”, sustenta Beatriz.
O IBGE contabiliza a população negra como a soma de pretos e pardos, apesar de serem classificações distintas. Beatriz relembra que o termo ‘negro’ passou a ser utilizado da década de 1970 pelos movimentos de ativismo como forma de enfrentamento político e reinvindicação coletiva. Para ela, trabalhos de estudiosos como Nilma Lino Gomes, Kabengele Munanga e Lélia Gonzalez são essenciais para definir a palavra como uma maneira de afirmação política e identitária.
“A diferenciação das nomenclaturas surgiu da necessidade de estruturação e organização política que pudesse pautar a autodeclaração e heteroidentificação através do quesito raça/cor. Com essas informações, o governo consegue formular políticas públicas com base nos dados, e também na escuta da sociedade civil e suas lideranças”, diz a pesquisadora.
Prefeituras que negaram os pedidos de informação
Aracaju (SE) – a prefeitura negou as informações solicitadas alegando que “outros dados e informações devem ser solicitados por meio de ofício, direcionado à Secretaria Municipal da pasta, que emitirá a resposta formal adequada e disponibilizará os dados e informações cuja legislação permite a divulgação”. Ainda segundo o órgão, “alguns dos itens constantes na solicitação inicial se classificam no que a LGPD chama de ‘dados sensíveis’, possuindo sua divulgação proibida, a menos que haja fundamentada ordem judicial”. No entanto, conforme o art. 5º, inciso V, da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), somente a pessoa natural (viva) é protegida pela LGPD, não especificando nenhum nível de tratamento de dados para pessoas falecidas. A reportagem não solicitou qualquer dado que pudesse identificar as vítimas, apenas informações como idade, sexo, naturalidade e causa das mortes. A resposta do órgão pode ser considerada violação da liberdade de informação, prevista no art 1º, inciso III, da mesma Lei.
Porto Alegre (RS): inicialmente, a Diretoria de Vigilância Sanitária municipal informou que não possui “dados publicizados e estratificados que respondam à solicitação” e que “a estratificação das informações conforme solicitado, através do banco de dados do Sistema de Informação de Mortalidade (SIM) é prejudicada, por limitações do próprio Sistema”. Segundo a prefeitura, só é possível acessar os dados após a formalização de um projeto de pesquisa “com tramitação no Comitê de Ética em Pesquisa da Prefeitura de Porto Alegre, uma vez que tratam-se de dados sensíveis dos cidadãos”. A reportagem pediu o reexame da solicitação, considerando o interesse público dos dados. Em resposta, a diretoria afirmou que os itens questionados “são de acesso restrito e sigilosos, por conter dados pessoais e sensíveis, como endereço dos cidadãos, bem como demais dados pessoais, e outras informações de saúde, além da causa da morte”. Além disso, a diretoria citou que “a informação solicitada exigirá trabalhos adicionais de análise, interpretação e consolidação de dados e de informações, ainda não sistematizadas pelo órgão ou entidade da administração municipal”. A reportagem enviou um recurso citando a definição do termo ‘pessoa natural’, conforme consta na LGPD, no entanto, a Comissão Mista de Avaliação de Reavaliação de Informações, negou provimento ao recurso justificando que o levantamento dos dados “acarretaria em trabalhos adicionais”.