A menos de um ano das próximas eleições presidenciais na Colômbia, movimentos populares alertam para a persistência da violência política em diversas regiões do país. Mesmo com a proposta de “paz total” do presidente Gustavo Petro, os assassinatos de lideranças sociais, indígenas, camponesas e de ex-combatentes guerrilheiros seguem em níveis alarmantes. Dados do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento e a Paz (Indepaz) mostram que entre 2016 e 2024 foram assassinados quase 2 mil líderes sociais. Somente em 2023, o Indepaz registrou 188 homicídios, enquanto em 2024 foram 173. Até agosto de 2025, já são mais de 100 casos.
O Indepaz mantém um painel atualizado com os últimos casos de violência, gráficos e balanços da última década. Segundo esses dados, 270 líderes camponeses, 104 líderes negros, 356 indígenas, 94 sindicalistas, 28 ambientalistas e 144 políticos foram mortos desde 2016. Os números mais altos da série foram registrados entre 2018 e 2020, com picos de mais de 250 assassinatos por ano, durante o governo de extrema-direita de Iván Duque.
O cenário evidencia que os desafios à construção de uma paz efetiva seguem ativos e sua superação não depende somente da vontade do governo atual. O próprio presidente admite as dificuldades em obter resultados substantivos na redução da violência política. Em recente discurso no Congresso, durante um discurso da quase três horas, ele foi franco: “Em meio a grandes dificuldades históricas, seguimos apostando na paz, tema de segurança que merece atenção, porque obviamente este governo não alcançou a paz total”.
“Precisamos analisar onde estamos errando”, completou o mandatário. A política de “paz total” foi formalizada pela Lei 2272/2022, que transformou a paz em política de Estado e abriu duas vias: negociação política com guerrilhas e submissão à Justiça para grupos do crime organizado. No entanto, a implementação esbarrou em entraves jurídicos e políticos.
Com o Exército de Libertação Nacional (ELN), a última grande guerrilha histórica da Colômbia ainda em armas, as conversas chegaram a avançar em 2023. Houve cessar-fogo bilateral, criação de mecanismos de verificação com participação da Organização das Nações Unidas (ONU) e envolvimento de organizações da sociedade civil. Mas a trégua foi instável e, diante da pressão da direita e de setores militares, os diálogos entraram em suspensão no início deste ano.
“A mesa com o ELN consegue avançar na participação civil, com cerca de 80 mil pessoas, até a conquista do Acordo do México, com compromissos de discussão do modelo econômico, do regime político e da situação ambiental. Mas a direita reage a essa agenda, e o governo não tem a firmeza para defender o acordo”, avalia, em entrevista ao Brasil de Fato, resume Luís Alfredo Burbano, da Corporación para la Educación e Investigación Popular (Cedins) e do Instituto Nacional Sindical. Ele é parte do Congreso de los Pueblos, uma coalizão, formada por movimentos indígenas, campesinos, urbanos, afrodescendentes e sindicais, que se reuniram recentemente com organizações brasileiras para construir agendas comuns de luta popular.
Em janeiro, a guerrilha lançou uma ofensiva militar contra uma das dissidências em armas das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo (Farc-EP), que se desmobilizou em 2016 após firmar um acordo de paz com o governo, criando o partido político Comunes. A guerra contra a chamada Frente 33, deixou ao menos 80 mortos e o deslocamento massivo de 50 mil pessoas, na região do Catatumbo.
“A situação no Catatumbo ensina. Precisamos aprender com os fracassos, e lá temos um fracasso da Nação”, disse Petro, à época. Ele também acusou a guerrilha de “trocar a revolução pela cobiça” e questionou o fortalecimento armado do grupo durante o cessar-fogo com o governo. “Por que o ELN há poucos meses de ser muito fraco militarmente agora é muito forte?”
No caso das dissidências das Farc-EP, a situação foi ainda mais complexa. Após a desmobilização de 2016, vários grupos se reconstituíram em frentes regionais e, hoje, estão fragmentados em pelo menos 14 estruturas que orbitam quatro grandes guarda-chuvas: o Estado Mayor Central (EMC), o Estado Mayor de Bloques y Frentes (EMBF), a Segunda Marquetalia e a Coordinadora Nacional Ejército Bolivariano (CNEB).
Apenas algumas dessas frentes mantêm o discurso político histórico. A diversidade de agendas tornou inviável um processo unificado de negociação, reforçando a percepção de que a “paz total” acabou se tornando mais uma bandeira do que uma realidade prática.
“Desde o começo, a Paz Total teve dificuldade por tratar com uma mesma política atores de caráter totalmente distintos. Ao tratar de abrange-los dentro da mesma lógica de paz total, imediatamente as dificuldades começam”, resume Luís Alfredo.
“Ao colocar todos os grupos criminosos e a guerrilha em um só pacote, se desfigura o caráter político do conflito. Os assassinatos passam a não gerar uma consequência para o Estado. Há uma violência política generalizada, mas que está esvaziada de caráter político. Se uma liderança social ou popular morre, fica fácil dizer que foi assassinada por ‘grupos do narcotráfico’ e se esvazia o caráter político da violência no país”, afirma Sonia Milena Lopez, da equipe de direitos humanos do Congreso de los Pueblos e presidenta da Fundação Joel Sierra, que atua na região de Arauca, na fronteira com a Venezuela, um dos locais mais afetados pela violência dos conflitos armados no país.
Assassinatos seguem, apesar da redução dos índices gerais
Nos indicadores gerais de segurança, o governo Petro chegou a registrar sinais de melhora. Em janeiro e fevereiro de 2025, o número de homicídios comuns caiu 3,1% em relação ao mesmo período do ano anterior. Mas, no acumulado de janeiro a julho, houve uma alta de 268 casos, com 7.796 homicídios em todo o país, de acordo com a Polícia Nacional.
A violência política também permanece, em que pese os números serem um pouco menores desde a posse de Petro. Em 2023, o Indepaz registrou 187 líderes sociais assassinados; em 2024 foram 170; e até agosto de 2025 já passam de 100 casos. Os ex-combatentes signatários do Acordo de Paz também seguem em risco: 44 foram assassinados em 2023, 31 em 2024 e 25 somente no primeiro semestre de 2025. Além disso, o número de massacres permanece alto: 93 em 2023, 76 em 2024 e 50 até agosto de 2025, segundo o Indepaz.
“A violência não acabou. Os alvos continuam sendo lideranças sociais e ex-guerrilheiros. O objetivo é exterminar o movimento social. A violência contra as populações continua sendo a mesma”, diz Sonia Milena.
Além da violência armada protagonizada por grupos ilegais, movimentos populares denunciam que o próprio Estado segue atuando como agente de repressão e proteção aos interesses do capital, especialmente nos territórios ricos em recursos naturais. “A militarização dos territórios facilita o avanço da mineração e do agronegócio. Isso segue acontecendo”, completa.
Além da realidade de Arauca, Chocó, Bolívar e Cauca, a presença militar supostamente voltada ao combate ao narcotráfico é utilizada, segundo Sonia, para abrir caminho a grandes projetos extrativistas e conter comunidades indígenas, camponesas e negras.
A chegada de Petro ao poder
A chegada de Petro ao poder não pode ser compreendida sem o contexto da grande revolta popular de 2021, uma greve geral que ocorreu em diferentes regiões e foi considerada a maior mobilização social da história da Colômbia. Durante quase dois meses, jovens precarizados das grandes cidades paralisaram o país com protestos, a partir da reforma tributária imposta pelo governo de Iván Duque. A repressão foi intensa: mais de 80 pessoas foram assassinadas e pelo menos 117 perderam a visão parcial ou totalmente, segundo organizações de direitos humanos.
O levante resultou em um profundo desgaste do governo Duque e abriu caminho para a vitória de Gustavo Petro e Francia Márquez, à frente da coalizão Pacto Histórico. A proposta era de realizar reformas estruturais nos campos da saúde, trabalho, previdência e, sobretudo, promover uma reforma agrária. A ideia de uma “paz total”, que integrasse tanto insurgências armadas como grupos do crime organizado, se tornou bandeira do novo governo.

Apesar do respaldo popular inicial, Petro teve que formar alianças com setores moderados da direita – como o grupo ligado ao ex-presidente Juan Manuel Santos – o que impôs limites à radicalidade do programa.
Em termos econômicos, o governo começou com uma inflação de quase 14% ao ano, contra os 4,8% atuais. Petro aumentou o salário mínimo em quase 10% e a economia cresceu 2,7%.
No campo das reformas estruturais, houve avanços. A maior vitória do governo está representada na reforma trabalhista, aprovada em junho de 2025 após mobilizações populares, instituindo mudanças como o aumento progressivo do adicional pago pelo trabalho em domingos e feriados e a antecipação do início da jornada noturna. Mas as demais propostas centrais enfrentam obstáculos.
A reforma previdenciária, aprovada em 2024, entrou em vigor em julho de 2025 depois de um período suspensa pela Justiça, criando o novo Sistema de Proteção Social Integral para a Velhice. O modelo estabelece pilares de contribuição solidária, semicontributiva e contributiva, prevendo uma renda básica para idosos vulneráveis e mecanismos de cobertura para quem não atingiu o tempo mínimo de contribuição. Em meio a uma nova onda de judicializações da reforma, o presidente pediu que “deixem de sabotar a reforma” e que “não deve haver política na justiça”.
Já a reforma da saúde avança em cenário mais turbulento: aprovada na Câmara, mas sem consenso no Senado, ela acabou sendo parcialmente implementada por decreto presidencial (Decreto 0858/2025). O texto cria os Centros de Atenção Primária em Saúde (CAPS) como porta de entrada territorial do sistema e redefine o papel das EPS (Entidades Promotoras de Salud), entidades semelhantes aos planos de saúde no Brasil. Na Colômbia, há EPS públicas, mas a maioria, equivalente a 80%, é privada.
Na prática, o decreto de Petro traz para o Estado a responsabilidade de gerir o orçamento da saúde. “O que o governo da Colômbia está fazendo é salvar a vida, transformando o sistema de saúde, que hoje não funciona para a vida”, explicou Petro. O governo argumenta que a medida é necessária para fortalecer a atenção primária e ampliar o acesso, mas médicos, ex-ministros e entidades de saúde já levaram a disputa já chegou à Justiça, com ações que podem suspender trechos do decreto, colocando em xeque um dos pilares mais ambiciosos da agenda social de Petro.
Na frente agrária, houve avanços, como a criação de uma Jurisdição Agrária por emenda constitucional em 2023, além da compra de 370 mil hectares e a gestão de um total de 601 mil hectares pela Agência Nacional de Tierras (ANT) até meados de 2025. Mas a lei ordinária que regulamenta a nova jurisdição ainda não foi aprovada, travando sua implementação plena.
A resistência contra as reformas é explicada, em parte, pela correlação de forças. Desde 2023, partidos tradicionais como Liberais, Conservadores e La U romperam com a coalizão de governo. Em 2025, foi a vez da Alianza Verde se dividir enquanto disputas internas no próprio Pacto Histórico aumentam as incertezas.
A disputa eleitoral de 2026 e a retomada das mobilizações
As eleições presidenciais estão marcadas para 31 de maio de 2026, o primeiro turno, e 21 de junho de 2026, o segundo. A Constituição, modificada em 2015, proíbe a reeleição presidencial, o que impede Gustavo Petro de disputar novamente. No campo governista, já surgem nomes como Iván Cepeda, Gustavo Bolívar, Susana Muhamad e María José Pizarro como potenciais sucessores.
Enquanto isso, movimentos populares se preparam para uma jornada nacional de mobilizações em outubro de 2025 para cobrar o cumprimento de acordos e pressionar pela aceleração da reforma agrária.
“Nós temos um governo, mas não temos o poder. Por isso seguimos nos mobilizando, recuperando terras, organizando nossos territórios”, conclui vice-presidente da Coordenadoria Nacional Agrária (CNA) da Colômbia.