A Volkswagen do Brasil foi condenada em primeira instância pela Justiça do Trabalho no Pará a pagar R$ 165 milhões em indenização por trabalho escravo ocorrido em uma fazenda de gado do grupo alemão, no sul do Pará, durante a ditadura militar. A montadora declarou que vai recorrer da sentença.
Publicada nesta sexta-feira (29), a decisão da Vara do Trabalho de Redenção (PA) determina ainda que a empresa assuma responsabilidade pública pelos fatos e faça um “pedido público de desculpas dirigido aos trabalhadores atingidos e à sociedade brasileira”. A sentença é assinada pelo juiz Otávio Bruno da Silva Ferreira.
“O fato de, à época, não ter havido responsabilização formal pela via administrativa ou criminal não impede a atuação da Justiça do Trabalho em ação civil pública, especialmente quando se trata de apuração de violações graves a direitos humanos trabalhistas”, escreve o juiz na decisão.
A ação movida pelo MPT (Ministério Público do Trabalho) acusa a Volkswagen do Brasil de aliciamento, endividamento forçado, condições degradantes de trabalho e moradia, dentre outras violações, na fazenda Vale do Cristalino, em Santana do Araguaia (PA), entre 1974 e 1986.
Em nota, a Volkswagen do Brasil informou que “seguirá sua defesa em busca de justiça e segurança jurídica nas instâncias superiores”. O texto diz que “a empresa defende consistentemente os princípios da dignidade humana e cumpre rigorosamente todas as leis e regulamentos trabalhistas aplicáveis.” Por fim, a empresa “reafirma seu compromisso inabalável com a responsabilidade social, que está intrinsecamente ligada à sua conduta como pessoa jurídica e empregadora”.
No decorrer do processo, a Volkswagen argumentou que não contratou os trabalhadores escravizados e que não mantinha relações formais com os intermediários. Durante a audiência de instrução ocorrida em Redenção no final de maio, o representante da empresa afirmou que “a Volkswagen apurou todas as denúncias de irregularidades, mas não foram identificadas e confirmadas”. A montadora destacou ainda que investigações foram feitas na época pela Polícia Civil do Pará, mas sem responsabilização da empresa.
Para o juiz, a falta de “responsabilização formal pela via administrativa ou criminal não impede a atuação da Justiça do Trabalho em ação civil pública, especialmente quando se trata de apuração de violações graves a direitos humanos trabalhistas”.
O magistrado relembrou o caso “Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil”, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao citar que “a omissão ou a insuficiência de investigações realizadas no passado não pode servir como fundamento para perpetuar a impunidade de violações relacionadas ao trabalho escravo”. Para o juiz, é “dever do Estado” reabrir a análise “sempre que novos elementos probatórios forem apresentados ou quando se verificar que a apuração anterior foi incompleta ou parcial.”
Volkswagen reconheceu abusos em São Bernardo do Campo
Antes de acionar a Justiça em dezembro de 2024, o MPT se reuniu cinco vezes com a fabricante para tentar uma conciliação. A Volks, porém, se retirou das conversas em 2023, alegando não ser responsável pelos fatos.
Três anos antes, a empresa havia assinado um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) com o MPT, o Ministério Público Federal e o MP de São Paulo, reconhecendo a perseguição e tortura de ex-funcionários em sua fábrica em São Bernardo do Campo (SP) durante a ditadura militar (1964-1985) e aceitando pagar R$ 36 milhões em compensações.
No processo trabalhista na Amazônia, a montadora alegou que firmou o TAC para encerrar qualquer discussão sobre sua atuação durante o regime militar. Disse ainda que o MPT, mesmo sendo parte do acordo, conduzia investigação paralela e sigilosa sobre a fazenda.
Para o juiz, no entanto, a apuração das violações de direitos humanos ocorridas na Fazenda Vale do Rio Cristalino (trabalho escravo e tráfico de pessoas) não foram tratados pelo TAC, que “cuidou de fatos diversos, ligados à repressão política no ambiente fabril, sem relação com o recrutamento e exploração de trabalhadores rurais na Amazônia”.
Pedido de desculpa e treinamento interno
Na decisão, o juiz Otávio Bruno da Silva Ferreira determina que os R$ 165 milhões da indenização sejam destinados ao Fundo Estadual de Promoção do Trabalho Digno e de Erradicação do Trabalho em Condições Análogas à de Escravo no Pará (Funtrad/PA).
A empresa também terá de publicar manifestações por internet, rádio e televisão nas quais assuma as responsabilidade e faça um “pedido público de desculpas”.
A Volkswagen também foi condenada a assumir um “compromisso público com a reparação e com a tolerância zero a trabalho escravo/tráfico de pessoas”, além da indicação de um “canal de denúncia”.
A decisão também afirma que a empresa terá de incluir cláusulas contratuais de “vedação a trabalho análogo ao de escravo” nos acordos celebrados com terceiros. Também precisará criar um programa de treinamento “sobre trabalho escravo e tráfico de pessoas para gestores, compradores e equipes de campo” e implementar um “processo de diligência em direitos humanos”.
Entenda as acusações contra a Volkswagen
A Volkswagen do Brasil é acusada de aliciar trabalhadores rurais e submetê-los a condições análogas à escravidão na fazenda Vale do Rio Cristalino, em Santana do Araguaia (PA), entre 1974 e 1986.
Em dezembro de 2024, após décadas de denúncias de organizações como a CPT (Comissão Pastoral da Terra) e sindicatos de trabalhadores, além de frustradas tentativas de acordo com a montadora alemã, o MPT (Ministério Público do Trabalho) denunciou a Volks por violações aos direitos humanos.
O processo contra a Volkswagen se destaca pela abundância de documentos históricos, depoimentos, fotos, investigações parlamentares e reportagens no Brasil e na Alemanha nos últimos 40 anos. A documentação detalha episódios de violência, tortura, escravidão por dívida, perseguições e ameaças atribuídos a funcionários e intermediários da antiga fazenda da montadora na Amazônia, dedicada à pecuária e extração de madeira.
A ação sustenta que o caso reúne os quatro elementos que, mesmo isoladamente, configuram trabalho escravo, de acordo com a legislação brasileira: trabalho forçado, servidão por dívida, condições degradantes ou jornada exaustiva.
O número de trabalhadores afetados é incerto. Segundo a denúncia do MPT, os lavradores escravizados eram recrutados em cidades distantes e levados para atuarem na derrubada da mata nativa para abertura de pasto. A cada ano, até mil peões atuavam ao mesmo tempo em várias frentes de desmate. A CPT estimou na época ao menos mil vítimas.