Em momento histórico em Belo Horizonte, dezenas de famílias que há décadas lutam por memória, verdade e justiça receberam, pela primeira vez, certidões de óbito revisadas, com a informação verdadeira de que, durante a ditadura militar, seus familiares não morreram de forma natural, mas sim de forma violenta, causada pelo Estado brasileiro, no período da repressão política instaurada em 1964.
Até hoje, os documentos oficiais eram imprecisos. Alguns traziam apenas a confirmação da morte com base na Lei de 1995, sem detalhes, e outros chegaram a registrar informações falsas sobre as circunstâncias. Agora, com essa mudança, o Estado reconhece formalmente a responsabilidade por essas mortes.
A cerimônia aconteceu na quinta-feira (28), na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), durante uma audiência da Comissão de Direitos Humanos. 63 certidões foram corrigidas, e 22 delas entregues diretamente às famílias. O auditório estava cheio: parentes, militantes e defensores dos direitos humanos lotaram o espaço. Nas paredes, fotos das vítimas davam o tom simbólico de presença.
Para a presidenta da comissão, Bella Gonçalves (Psol), a cerimônia ganhou contornos ainda mais emblemáticos nesta terça-feira (2), momento em que os réus pela tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023 são julgados pela justiça.
“[Eles] tentaram um golpe contra a democracia brasileira. Isso mostra que a nossa democracia ainda está bastante frágil”, lembra.
Segundo ela, o encontro na ALMG também foi um exercício de resgatar um período histórico como verdade inegável e, portanto, uma medida necessária, para que a ditadura não se repita.
“No estado de Minas Gerais, que tem um governador que coloca em cheque se houve ou não ditadura no Brasil, fazer a primeira cerimônia de entrega das certidões de óbito retificadas com o reconhecimento oficial do Estado de que essas pessoas não morreram de causas naturais, não desapareceram por acidente, mas foram assassinadas pelo Estado brasileiro em um processo de perseguição política, é algo grandioso”, reflete.
Luta também é por justiça
A primeira certidão entregue foi para Mônica Fonseca, parente de Adriano Fonseca Filho, estudante e militante do PCdoB desaparecido na Guerrilha do Araguaia. Outro momento marcante foi quando Lurdinha Rocha, da família de Arnaldo Cardoso Rocha, militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), resumiu o sentimento dos familiares. Ela disse que eles não querem apenas reparação e sim justiça.
“A luta por justiça é muito desigual, porque a gente teve um pacto de anistia construído na transição da ditadura para democracia, onde pessoas e instituições foram protegidos. Pessoas e instituições ligadas ao regime militar”, explica Gonçalves, em relação a essa reivindicação.
“Hoje nós temos os familiares dos torturados recebendo pensão do Estado, ‘pensões gordas’, enquanto os familiares das pessoas mortas e desaparecidas da ditadura estão lutando para ter uma certidão de óbito. Não dá para dizer que a gente de fato restaurou os direitos, a verdade e a justiça”, continua.
Organização e próximos passos
A cerimônia também é organizada nacionalmente pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDH), que também participou do evento. Uma de suas integrantes, Vera Silvia Facciolla Paiva, filha do ex-deputado federal Rubens Paiva, torturado e assassinado pela repressão militar em 1971, estava presente. O caso foi retratado no filme Ainda Estou Aqui, vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional neste ano.
Segundo a CEMDP, as solenidades também devem acontecer, brevemente, em outros estados.