Neste dia 2 de setembro tem início um julgamento que pode marcar profundamente a trajetória da nossa democracia. Estarão diante da Justiça o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros sete aliados, acusados de tentar um golpe de Estado após as eleições de 2022. A partir das 884 páginas do relatório da Polícia Federal (PF), eles responderão pelos crimes de organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça, além de deterioração de patrimônio tombado.
Entre os réus, além de Jair Bolsonaro, estão nomes de peso da antiga cúpula militar e política: Alexandre Ramagem, ex-diretor da Abin, que por foro privilegiado teve parte das acusações suspensas e responderá a três dos cinco crimes; o almirante Almir Garnier, ex-comandante da Marinha; Anderson Torres, ex-ministro da Justiça; os generais Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira e Walter Braga Netto; e o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro.
Este julgamento é inédito. O Brasil não tem tradição de punir criminosos das camadas privilegiadas. Pelo contrário, sempre reservamos o rigor da lei para a população negra e pobre, enquanto a impunidade se mantém como regra para quem concentra renda, terras e poder. Também é inédito o acesso da sociedade às informações do processo, que revelam até planos de assassinato contra o presidente eleito Lula, seu vice Geraldo Alckmin e autoridades como Alexandre de Moraes.
Não é possível esquecer que a impunidade tem um preço alto para a democracia. Há 46 anos, depois de uma ditadura militar violenta, o país promulgou a Lei da Anistia, impedindo a investigação e o julgamento dos crimes cometidos durante décadas. Nenhum militar ou civil foi sequer julgado pelo golpe de 1964. O Movimento Tortura Nunca Mais conquistou, anos depois, a Comissão da Verdade, mas até essa conquista foi enterrada após o impeachment sem crime de responsabilidade da presidenta Dilma Rousseff. Em 2016, Dilma alertou: “A história será implacável com os que hoje se julgam vencedores”. Ela estava certa.
Hoje, pesquisas mostram que entre 51% e 56% da população é contrária à anistia, porque compreende que investigar e punir agressores da democracia é essencial para que episódios como os de 2021 a 2023 não se repitam: manifestações golpistas em frente aos quartéis, atentado a bomba no aeroporto de Brasília, ataque violento à sede da Polícia Federal e, por fim, a invasão das sedes dos três poderes em 8 de janeiro de 2023.
No mesmo momento em que se inicia este encontro histórico, escândalos de corrupção envolvendo a cúpula do bolsonarismo, o PCC e a Faria Lima se multiplicam. Eduardo Bolsonaro, deputado federal, atua a partir dos Estados Unidos, em aliança com o neto do ditador Figueiredo e com Donald Trump, ameaçando delegados da Polícia Federal e articulando sanções contra ministros do Supremo e contra a economia brasileira. No Parlamento, sob o comando figurativo de Hugo Motta, a Câmara dos Deputados parece paralisada entre o bolsonarismo, o silêncio e o cinismo. Com bilhões em emendas pouco transparentes, tenta-se aprovar legislações que anistiem parlamentares antes mesmo de seus julgamentos, como a chamada PEC da Blindagem.
A imprensa hegemônica, em vez de proteger a democracia, naturaliza esses absurdos e oferece espaço para que criminosos defendam abertamente o autoritarismo. Flávio Bolsonaro chegou a afirmar em entrevista que seria preciso “fechar o STF” caso o próximo presidente não conceda indulto a seu pai. Ciro Nogueira, recentemente exposto em denúncias de recebimento de propinas do PCC, até ontem tinha espaço semanal como comentarista político em uma grande emissora. Tarcísio de Freitas, apresentado como “bolsonarista moderado”, continua a se aproximar de golpistas e corruptos. Enquanto isso, outros políticos tentam herdar o legado sombrio de Bolsonaro, o mesmo presidente que se negou a comprar vacinas durante a pandemia de covid-19 e colaborou diretamente para a morte de mais de 700 mil brasileiros.
A democracia, ainda frágil, tenta se levantar e buscar justiça. É nesse cenário que a Plataforma dos Movimentos Sociais por Outro Sistema Político, da qual faço parte, composta por mais de 150 movimentos e organizações da sociedade civil, se manifesta publicamente para exigir que a lei seja cumprida. Precisamos, como sociedade, superar esse capítulo rumo a uma democracia real, que contemple quilombolas, indígenas, juventudes negras periféricas, LGBTIQAPN+, trabalhadores e trabalhadoras, mulheres, crianças, idosos e idosas, pessoas com deficiência.
O Brasil que subiu a rampa com Lula precisa respirar. Precisamos de um julgamento limpo, sem juízes suspeitos, com devido processo legal e com punição efetiva dos envolvidos, sejam eles generais, ex-ministros, parlamentares ou o próprio ex-presidente Jair Bolsonaro.
*Carmela Zigoni, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc); Marco Antonio Correa Mota, indigenista; Daniela Oliveira Tolfo, secretária-executiva do Centro de Assessoria Multiprofissional (Camp) e direção da Associação Brasileira Organizações Não Governamentais (Abong); e Romi Marcia Bencke, teóloga de confissão luterana.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.