A lista de projetos de interesse nacional parados no Congresso aumenta à medida que a direita – incluindo parlamentares de centro e de extrema direita – trava qualquer discussão que não seja a anistia aos condenados pela tentativa de golpe de Estado no Brasil. Parlamentares bolsonaristas aproveitam a fragilidade do presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB), para repetir o discurso de perseguição judicial, o que justificaria a “prioridade da anistia”.
Para o público externo, esses parlamentares mencionam casos de pessoas condenadas por participarem dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro, assumindo mais uma vez o discurso de defesa da família e dos direitos humanos, os quais costumam desprezar em outras situações. Nos bastidores, não há qualquer prudência em afirmar abertamente que o objetivo é proteger apenas uma família: a do ex-presidente da República Jair Bolsonaro (PL).
“Ou ele nos atende, ou ele não nos atende. Não tem outro caminho para ele”, disse o líder do Partido Liberal (PL) na Câmara, Sóstenes Cavalcante (RJ), em conversa com jornalistas, referindo-se a Hugo Motta. “Já foi negociado. Nós desocupamos o plenário do Senado e da Câmara por causa de quê? Nós não negociamos nada? Nós somos todos bobinhos? É isso?”, ironizou Cavalcante, agregando que agora a oposição quer ainda reverter a inelegibilidade de Bolsonaro.
O deputado afirmou que o projeto de anistia conta com o apoio explícito de mais de 200 parlamentares e descartou a possibilidade de discutir um projeto alternativo, em que se exclua a anistia aos articuladores e financiadores da tentativa de golpe. A ideia de um projeto alternativo foi aventada pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP). “Eu pago para ver. Ele [Davi Alcolumbre] não consegue”, desafiou.
Já o líder do PL no Senado, Rogério Marinho (PL-RN), ironizou a proposta de Alcolumbre. “Isso é igual às orelhas de freira: estão encobertas ninguém viu”, respondeu, ao ser questionado pelo Brasil de Fato.
O senador disse que a anistia é uma prerrogativa constitucional do parlamento brasileiro e acusou o Supremo Tribunal Federal (STF) de “interditar” o debate no parlamento.
“Esse é um debate que aparentemente está interditado por outro poder. Acho que a grande pergunta que a sociedade tem que fazer nesse momento é: se há democracia quando um poder é tutelado por outro poder, na contramão do que diz a nossa Constituição de que os poderes são harmônicos e independentes entre si”, declarou Marinho.
“Tapa na cara do povo”
O líder do governo na Câmara, deputado Alencar Santana (PT-SP), diz esperar que o presidente da Câmara, sabendo que não é constitucional, impeça que o projeto seja colocado em votação.
“A anistia é mais um golpe, é uma irresponsabilidade tremenda com o futuro do país. Eu espero primeiro que não vá a votação, que o presidente Hugo Mota, ao saber que é inconstitucional, não avance. Segundo, se for, que a gente derrote. E lembrando que terceiro, se ela for aprovada, o presidente Lula vai vetar”, afirmou.
“Avançar com a anistia na Câmara é dar um tapa na cara do nosso povo, é dar um tapa na cara da democracia, é dar um tapa na cara do parlamento, onde todos os seus representantes foram eleitos através do voto, de maneira democrática. Ou seja, é atentar contra o país como um todo, não tem sentido algum”, concluiu Santana.
A deputada federal Maria do Rosário (PT-RS) lembra que a atuação de bolsonaristas para salvar o ex-presidente também tem prejudicado o país do ponto de vista econômico. “São responsáveis por esse tarifaço que eles articularam junto ao governo Trump e também são responsáveis pelo atraso de votações que interessam ao povo, como o fim da jornada 6×1 e a isenção do imposto de renda até R$ 5 mil e a redução até R$ 7,3 mil, na medida em que eles insistem com uma anistia espúria, ilegal e inconstitucional”, aponta.
Já a deputada Érika Kokay avalia que, o que parece um absurdo aos olhos da sociedade, pode ser facilmente reproduzido pela natureza da extrema direita brasileira.
“Os fascistas são muito autocentrados, então defendem os seus próprios e diletos interesses, mesmo que estes não sejam os interesses da própria população. Então, obviamente, eles estão tentando impor para o Poder Legislativo. Sequestraram a Câmara logo no reinício dos trabalhos, depois do recesso, e continua, de certa forma, tentando sequestrar a Câmara numa concepção golpista de dar continuidade ao golpe, porque, em verdade, anistia significa validar todas as ações que houve no Brasil contra a própria democracia”, declarou a parlamentar.
Constituição limita possibilidades de anistia
Em maio de 2023, o STF anulou um decreto do então presidente Jair Bolsonaro, que concedia indulto ao ex-deputado Daniel Silveira, condenado a oito anos e nove meses de prisão por ameaça ao Estado Democrático de Direito e coação no curso do processo. À época, os ministros do Supremo consideraram que o indulto não poderia ser aplicado a condenados por crimes contra a democracia, tendo em vista que o regime é considerado uma cláusula pétrea da Constituição Federal.
“Entendo que crime contra o Estado Democrático de Direito é um crime político e impassível de anistia, porquanto o Estado Democrático de Direito é uma cláusula pétrea que nem mesmo o Congresso Nacional, por emenda, pode suprimir”, argumentou o ministro Luiz Fux.
Em artigo publicado no portal Consultor Jurídico, o jurista Lênio Streck esclarece que, mesmo que não haja expressão proibitiva da concessão de anistia para esses casos, há uma vedação “implícita”.
“Nesse precedente (ADPF 964), já se vê a pista da inconstitucionalidade de eventual lei anistiando golpistas. Há uma passagem em que se lê: ‘Indulto que pretende atentar, insuflar e incentivar a desobediência a decisões do Poder Judiciário é indulto atentatório a uma cláusula pétrea prevista no artigo 60 da CF’. Isto é o que se chama ‘proibição implícita’. Igualzinha à vedação de ursos. Não precisa ser dito. Está implícita a proibição”, escreveu o jurista.
Projetos parados no Congresso
Enquanto a oposição repete o discurso pela anistia, projetos de interesse nacional seguem parados no Congresso. Exemplo disso é o Projeto de Lei que isenta os trabalhadores com renda de até R$ 5 mil de pagar Imposto de Renda e reduz a alíquota para quem ganha até R$ 7 mil. A urgência do projeto chegou a ser aprovada, evitando que ele tenha que passar por comissões antes de ser votado, no entanto, ainda não foi levado ao plenário. O PL precisa ainda passar pelo Senado e ser aprovado antes do dia 30 de setembro para que as novas regras possam valer já em 2026.
“O país tem outras prioridades, por exemplo, votar o imposto da isenção do imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil. Pergunto: o que é mais importante para o povo? Garantir a isenção da isenção do imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil ou votar a anistia para perdoar aqueles que cometeram crimes e que sabe que cometeram crimes?”, questiona Alencar Santana.
O fim da escala de trabalho 6×1, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Segurança Pública, o marco legal da inteligência artificial e a reformulação do Plano Nacional de Educação são outros projetos que impactam positivamente a vida dos brasileiros, e que seguem travados por conta da chantagem bolsonarista.
“A anistia que interessa ao povo brasileiro é a anistia do imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil”, disse Kokay. “Temos fazer um grande movimento popular para dizer que é sem anistia e que é taxar o super ricos, isentar o imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil e também o tema da vida além do trabalho, eliminando a jornada 6×1”, afirmou a parlamentar.